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O uso nocivo do álcool é um tabu médico e social. Impregnado de questões e crenças relacionados aos aspectos morais, biológicos e sociais é uma barreira ser superada em uma entrevista clínica, tanto para o profissional quanto para o paciente. Pensando nisso, trouxemos aqui um sugestão de como abordar esse tema em uma consulta breve.
O alcoolismo é responsável por cerca de 5,9% das causas de mortalidade no mundo, o que supera outras causas como o HIV/AIDS e a tuberculose. O impacto social causado pelo abuso do álcool perpassa pelo maior número de acidentes, violência, violência doméstica e absenteísmo laboral.
No cenário brasileiro, a média para início de consumo do álcool é cerca de 12,5 anos. Aproximadamente 11% dos homens e 2% das mulheres que são acompanhados pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, no Brasil, consomem álcool diariamente. Quando se aplicam esses números em um cenário real de prática clínica, encontramos o seguinte panorama: 20% das pessoas que usam o serviço de atenção primária bebem em algum nível considerado de alto risco, pelo menos em uso abusivo. O alcoolismo é o principal problema em todos os níveis de atenção à saúde. Isso significa dizer que é um agravo com prioridade de abordagem clínica em igual patamar ao da hipertensão.
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A abordagem do uso abusivo do álcool envolve muita preparação do profissional que fará a abordagem. O aspecto da consulta não deve carregar nenhum caráter punitivo e sim de maior empatia possível para que se estabeleça um vínculo e o usuário passe a usar o serviço de saúde também para tratar dessa questão. É necessário entender que o consumo do álcool é como um continuum em que em um extremo está o não uso e no outro a completa dependência física e psíquica com a necessidade do consumo para o funcionamento das funções orgânicas. Dessa forma, percebemos bem na abordagem clínica os extremos, mas deixamos passar frequentemente o que está neste intervalo, que o momento de maior chance de preservação da funcionalidade e recuperação do indivíduo.
Assim, o momento de avaliar essa questão deve estar presente não só como uma investigação de hábitos e vícios de uma anamnese padrão. Como fazer isso? Podemos usar três ferramentas em conjunto:
- Pergunta de rastreio
- Instrumento de triagem para uso abusivo
- Instrumento de identificação de padrão de consumo
Usando de uma abordagem centrada na pessoa e com o máximo de empatia podemos usar a seguinte pergunta de rastreio: “Você bebe cerveja, vinho ou alguma outra bebida alcoólica?”, caso a resposta seja afirmativa seguimos para o próximo passo. A estratégia é uma maneira de se evitar o automático “O senhor ou a senhora bebe, ou já bebeu alguma vez ao longo da vida?” e a também automática resposta “só socialmente”.
O passo seguinte consiste na aplicação do questionário CAGE, para triagem do uso abusivo de álcool. O questionário consiste de quatro perguntas; duas respostas positivas indicam abuso do álcool. O questionário está ilustrado a seguir e você o encontra disponível no Whitebook.
C | Alguma vez você sentiu que deveria diminuir a quantidade de bebida ou parar de beber? |
A | As pessoas o(a) aborrecem ao criticar seu modo de beber? |
G | Você sente-se culpado(a)/chateado(a) pela maneira como costuma beber? |
E | Você costuma beber pela manhã para diminuir o nervosismo ou ressaca? |
A partir de então podemos aplicar o instrumento AUDIT para definir o padrão de consumo recente. Essa é um momento primordial para se iniciar o processo de estabelecimento das intervenções a serem realizadas. Tanto a escala CAGE quanto a AUDIT devem servir de feedback imediato para o paciente, sendo preenchidos em conjunto de modo acolhedor para que se possibilite o insight do indivíduo quanto às dimensões do dano relacionado ao consumo e também as estratégias para evitá-lo (a mesma ponderação é viável para o uso nocivo de outras substâncias).
Esses três passos iniciais da abordagem são os de maior relevância para se criar um campo para a modificação do estilo de vida e mudança do estágio de motivação do indivíduo. Dessa forma deve-se valorizar os atributos da atenção primária, cultivando a longitudinalidade como ferramenta de intervenção. Isso significa que não necessariamente devemos abordar os três passos em uma única consulta. Cada usuário indicará no momento da entrevista a abertura para o passo seguinte.
A mensagem para se fixar é que o consumo de álcool é relevante e deve ser manejado na consulta como outra comorbidade clínica, a exemplo da hipertensão. Qualquer profissional com abertura e disponibilidade pode fazer essa abordagem inicial se souber quais instrumentos utilizar para cada uma delas. Agora você já conhece os instrumentos e sabe como utilizá-los.
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Referências:
- GUSSO, Gustavo; LOPES, José Mauro Ceratti. Tratado de Medicina de Família e Comunidade-: Princípios, Formação e Prática. Artes Medicas, 2018.
- AMERICAN PSYCHIATRY ASSOCIATION (APA). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Diseases. 5th ed. Washington, DC: American Psychiatric Association; 2013.
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