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Psiquiatria18 novembro 2025

Desfechos de saúde mental em pessoas transgênero e não binárias

Fragilidades metodológicas dos estudos primários podem ser fonte de vieses na prática clínica e psiquiatras devem se atentar aos resultados dessa metanálise.
Por Tayne Miranda

Pessoas transgêneros são aquelas cuja identidade de gênero é discordante da expectativa social baseada no sexo designado ao nascimento. “Não binário” é usado para descrever identidades de gênero que estão além do paradigma binário de gênero (menina/mulher ou menino/homem), e algumas — mas não todas — pessoas não binárias se identificam sob o guarda-chuva trans. Embora haja grande diversidade dentro das populações trans e não binária, o grupo é unido por uma experiência comum de marginalização.

As evidências científicas mostram consistentemente que a população trans e não binária têm piores desfechos em saúde mental, mas as informações epidemiológicas sobre transtornos mentais e do neurodesenvolvimento, particularmente em comparação com as pessoas cisgênero, permanece pouco estudada.

Nesse sentido, Kirsten J. Hainey e colaboradores conduziram uma revisão guarda-chuva para sintetizar e avaliar as evidências que descrevem a prevalência, incidência e mortalidade associadas a condições de saúde mental e neurodesenvolvimento em pessoas trans e não binárias.

 

Método

O estudo foi realizado de acordo com as diretrizes Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA). Artigos publicados até 21 de agosto de 2023 nas seguintes bases de dados Embase, MEDLINE e APA PsycINFO foram avaliados. A população de interesse foi adultos (>18 anos) trans e não-binários. Os desfechos avaliados foram condições de saúde mental e neurodesenvolvimento.

 

Resultados

Vinte e quatro revisões foram incluídas para a síntese. As revisões foram publicadas entre 2017-2023 e incluíram 754 estudos primários relevantes para a pergunta da revisão guarda-chuva, publicados entre 1983-2022. O número dos estudos primários publicados aumentou ao longo do tempo. Mais da metade dos estudos foram realizados na América do Norte e todos foram publicados em inglês.

As formas de avaliação da identidade de gênero foram heterogêneas, incluindo autorrelato, registro da identidade trans e não binária em prontuários eletrônicos de saúde ou o uso de serviços de saúde afirmativos de gênero como uma medida indireta. Do mesmo modo, houve heterogeneidade na avaliação dos desfechos entre as revisões, incluindo autorrelato, diagnósticos em prontuários eletrônicos e diversos instrumentos de triagem ou diagnóstico.

A qualidade das revisões incluídas foi limitada por fragilidades metodológicas, incluindo ausência de protocolo de revisão (17 revisões [71%]), falha na avaliação do risco de viés (11 revisões [46%] utilizaram ferramentas de avaliação de qualidade) e falta de justificativa para a exclusão de estudos primários (23 revisões [96%]).

 

Suicídio e autolesão não suicida

A prevalência ao longo da vida em pessoas trans e não binárias de ideação suicida foi de 50% (IC 95% 42-57; I²: 88.4%) e 29% para tentativas de suicídio (IC 95% 25-34; I²: 99,1%). Houve pouca diferença nas estimativas de prevalência ao longo da vida entre homens trans e mulheres trans, tanto para ideação suicida (homens trans: 53%; IC 95% 44–62; I²: 88,9%; mulheres trans: 43%; IC 95% 33–55; I²: 90,9%) quanto para tentativas de suicídio (homens trans: 22%; IC 95% 13–31; I²: 96,8%; mulheres trans: 26%; IC 95% 22–30; I²: 89,6%).

Uma metanálise comparando pessoas trans e não binárias com cisgênero encontrou uma razão de chances (RC) de 3,48 (IC 95% 2,41-491) para ideação suicida e 3,45 (IC 95% 2,40-4,64) para tentativas de suicídio. Uma metanálise de 15 estudos encontrou uma prevalência ao longo da vida de automutilação não suicida em pessoas trans e não binárias de 46,65% (n=4724, IC 95% 39,35-54,10; I²: 95,0%) – a prevalência estimada para pessoas cisgênero ou heterossexual é significativamente menor (14,57%). Uma metanálise de sete estudos encontrou um maior risco de autolesão não suicida em pessoas trans e não binárias em comparação com pares cisgênero (RC: 3,42, IC 95% 1,99-5,89).

 

Depressão e ansiedade

Nenhuma metanálise avaliou a prevalência ou incidência de depressão ou ansiedade. Duas revisões com meta-análises abordaram o risco de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). A primeira comparou o risco de TEPT em pessoas trans e não binárias com controles cisgênero e com maior risco nas pessoas trans e não binárias (RC 2,52; IC 95% 2,22–2,87; I²: 79%). A segunda revisão encontrou achados semelhantes em um subconjunto da população trans e não binária — mulheres trans e minorias sexuais. Quando comparadas com pares cisgênero, foi relatado um risco 75% maior de TEPT (RC 1,75; IC 95%, 1,22–2,50).

 

Transtorno alimentar

Uma metanálise de cinco estudos primários relatou prevalência combinada de transtornos alimentares em pessoas trans e não binárias de 17,70% (n = 1953; IC 95%, 16,32–19,08; I², 91,3%). Uma metanálise por subgrupo de gênero relatou maior prevalência ao longo da vida de transtornos alimentares em homens trans (19,46%; n = 1327; IC 95%, 17,72–21,21; I², 89,9%) do que em mulheres trans (14,72%; n = 627; IC 95%, 12,45–16,98; I², 92,7%).

 

Transtornos do neurodesenvolvimento

Uma metanálise de 25 estudos relatou uma estimativa combinada de prevalência de 11% (n = 8662; IC 95%, 8–16) para transtorno do espectro autista (TEA) em populações trans e não binárias, embora 13 estudos primários tenham incluído crianças e jovens. Uma revisão narrativa relatou prevalência estimada entre 5,5-29,6% de adultos trans e não binários em estudos clínicos com pessoas com TEA. A variação na prevalência pode ser parcialmente atribuída às mudanças nos critérios diagnósticos de TEA e a maior conscientização sobre o transtorno. Ambas as revisões reconhecem que a heterogeneidade nos estudos primários é uma limitação, mas concluem que TEA deve ser mais prevalente na população trans e não binária que entre as pessoas cisgênero. Uma única revisão narrativa, incluindo três estudos primários sobre transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) em adultos trans e não binários, relatou maior prevalência em comparação com adultos cisgênero, com estimativas variando de 4,1% a 11%.

 

Discussão

Críticas aos estudos primários foram muito frequentes nas revisões, dentre elas: potencial viés de mensuração, graças a diferentes definições de desfecho e formas de obtenção de dados nos estudos primários, bem como a validade incerta de instrumentos de triagem e diagnóstico em populações trans e não binárias; o viés de seleção, pelo uso de amostragem por conveniência, amostragem em rede (“bola de neve”) e recrutamento em serviços de saúde relacionados a gênero, que não refletem a população trans mais ampla de interesse; a limitação na generalização dos achados pelo predomínio de participantes brancos, predominantemente norte-americanos. Além disso, vários estudos apontaram um engajamento limitado dos pesquisadores com as comunidades trans e não binárias.

Essa revisão encontrou evidências consistentes de piores desfechos de saúde mental em adultos trans e não binários. As estimativas combinadas de prevalência sugerem que metade das pessoas trans e não binárias tem ideação suicida e quase um terço (29%) realizará pelo menos uma tentativa de suicídio na vida (prevalências maiores do que as encontradas na população em geral). Nenhuma revisão avaliando a mortalidade por suicídio foi encontrada, mas os estudos primários relatam uma maior mortalidade por suicídio nas pessoas trans e não-binárias quando comparadas com a população em geral.

Esse trabalho serve para iluminar as graves lacunas no conhecimento sobre a saúde mental de minorias de gênero. Não há estimativas robustas de prevalência de transtornos mentais comuns, como depressão e ansiedade, em decorrência dos dados populacionais limitados e problemas na síntese de evidências de estudos primários heterogêneos.

Poucas revisões apresentaram resultados desagregados sobre identidades de gênero específicas, considerando as pessoas trans e não-binárias como um grupo homogêneo. Ignorar a diversidade dentro da comunidade trans e não binária oculta disparidades sutis nessa população, uma vez que estudos primários mostram riscos distintos de desfechos em saúde para pessoas transmasculinas e transfemininas, por exemplo. Ademais, dados descrevendo a saúde mental de pessoas não binárias estavam praticamente ausentes.

Dentro das comunidades trans e não binárias, a experiência de vulnerabilidade não é universal e uma perspectiva interseccional é necessária para compreender o papel de múltiplos sistemas de poder nos desfechos de saúde mental. Várias revisões destacaram a escassez de evidências sobre o papel da raça nas vivências de grupos dissidentes de gênero. A raça raramente foi relatada ao descrever os dados demográficos dos participantes dos estudos primários e, quando documentada, a maioria dos participantes era branca. Além disso, há variações nas experiências de pessoas trans e não binárias, dependendo do contexto cultural, religioso e legal de onde residem. Por fim, faz-se necessário pesquisas com participantes que vivam fora da América do Norte e da Europa Ocidental para compreender melhor o panorama global e refletir conceituações culturalmente específicas de identidade de gênero. Este estudo mostra-se oportuno, considerando o atual clima sociopolítico, que tem apresentado um aumento da hostilidade contra pessoas trans e não binárias em âmbito global.

 

Limitações

A identidade de gênero frequentemente foi mal definida e muitas vezes não ficava claro se pessoas não binárias estavam incluídas nas populações dos estudos. Muitas revisões não especificaram os grupos de comparação em suas perguntas de pesquisa, refletindo a falta de grupos controles adequados na literatura primária. Alguns estudos utilizaram homens cisgênero que fazem sexo com homens como comparador, mas a experiência compartilhada do estresse de minoria reduz a validade externa dos achados para a população geral.

Fragilidades metodológicas dos estudos primários podem ter sido fonte de vieses, especialmente o viés de mensuração e o viés de seleção (o uso de amostras potencialmente enviesadas pode ter ocorrido pela dificuldade no recrutamento de participantes).

 

Autoria

Foto de Tayne Miranda

Tayne Miranda

Editora médica de Psiquiatria da Afya ⦁ Residência em Psiquiatria pela Universidade de São Paulo (USP) ⦁ Mestranda em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP) ⦁ Médica pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) ⦁ Psiquiatra do PROADI-SUS pelo Hospital Israelita Albert Einstein ⦁ Foi Psiquiatra Assistente do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo

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Referências bibliográficas

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