Pessoas transgêneros são aquelas cuja identidade de gênero é discordante da expectativa social baseada no sexo designado ao nascimento. “Não binário” é usado para descrever identidades de gênero que estão além do paradigma binário de gênero (menina/mulher ou menino/homem), e algumas — mas não todas — pessoas não binárias se identificam sob o guarda-chuva trans. Embora haja grande diversidade dentro das populações trans e não binária, o grupo é unido por uma experiência comum de marginalização.
As evidências científicas mostram consistentemente que a população trans e não binária têm piores desfechos em saúde mental, mas as informações epidemiológicas sobre transtornos mentais e do neurodesenvolvimento, particularmente em comparação com as pessoas cisgênero, permanece pouco estudada.
Nesse sentido, Kirsten J. Hainey e colaboradores conduziram uma revisão guarda-chuva para sintetizar e avaliar as evidências que descrevem a prevalência, incidência e mortalidade associadas a condições de saúde mental e neurodesenvolvimento em pessoas trans e não binárias.
Método
O estudo foi realizado de acordo com as diretrizes Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA). Artigos publicados até 21 de agosto de 2023 nas seguintes bases de dados Embase, MEDLINE e APA PsycINFO foram avaliados. A população de interesse foi adultos (>18 anos) trans e não-binários. Os desfechos avaliados foram condições de saúde mental e neurodesenvolvimento.
Resultados
Vinte e quatro revisões foram incluídas para a síntese. As revisões foram publicadas entre 2017-2023 e incluíram 754 estudos primários relevantes para a pergunta da revisão guarda-chuva, publicados entre 1983-2022. O número dos estudos primários publicados aumentou ao longo do tempo. Mais da metade dos estudos foram realizados na América do Norte e todos foram publicados em inglês.
As formas de avaliação da identidade de gênero foram heterogêneas, incluindo autorrelato, registro da identidade trans e não binária em prontuários eletrônicos de saúde ou o uso de serviços de saúde afirmativos de gênero como uma medida indireta. Do mesmo modo, houve heterogeneidade na avaliação dos desfechos entre as revisões, incluindo autorrelato, diagnósticos em prontuários eletrônicos e diversos instrumentos de triagem ou diagnóstico.
A qualidade das revisões incluídas foi limitada por fragilidades metodológicas, incluindo ausência de protocolo de revisão (17 revisões [71%]), falha na avaliação do risco de viés (11 revisões [46%] utilizaram ferramentas de avaliação de qualidade) e falta de justificativa para a exclusão de estudos primários (23 revisões [96%]).
Suicídio e autolesão não suicida
A prevalência ao longo da vida em pessoas trans e não binárias de ideação suicida foi de 50% (IC 95% 42-57; I²: 88.4%) e 29% para tentativas de suicídio (IC 95% 25-34; I²: 99,1%). Houve pouca diferença nas estimativas de prevalência ao longo da vida entre homens trans e mulheres trans, tanto para ideação suicida (homens trans: 53%; IC 95% 44–62; I²: 88,9%; mulheres trans: 43%; IC 95% 33–55; I²: 90,9%) quanto para tentativas de suicídio (homens trans: 22%; IC 95% 13–31; I²: 96,8%; mulheres trans: 26%; IC 95% 22–30; I²: 89,6%).
Uma metanálise comparando pessoas trans e não binárias com cisgênero encontrou uma razão de chances (RC) de 3,48 (IC 95% 2,41-491) para ideação suicida e 3,45 (IC 95% 2,40-4,64) para tentativas de suicídio. Uma metanálise de 15 estudos encontrou uma prevalência ao longo da vida de automutilação não suicida em pessoas trans e não binárias de 46,65% (n=4724, IC 95% 39,35-54,10; I²: 95,0%) – a prevalência estimada para pessoas cisgênero ou heterossexual é significativamente menor (14,57%). Uma metanálise de sete estudos encontrou um maior risco de autolesão não suicida em pessoas trans e não binárias em comparação com pares cisgênero (RC: 3,42, IC 95% 1,99-5,89).
Depressão e ansiedade
Nenhuma metanálise avaliou a prevalência ou incidência de depressão ou ansiedade. Duas revisões com meta-análises abordaram o risco de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). A primeira comparou o risco de TEPT em pessoas trans e não binárias com controles cisgênero e com maior risco nas pessoas trans e não binárias (RC 2,52; IC 95% 2,22–2,87; I²: 79%). A segunda revisão encontrou achados semelhantes em um subconjunto da população trans e não binária — mulheres trans e minorias sexuais. Quando comparadas com pares cisgênero, foi relatado um risco 75% maior de TEPT (RC 1,75; IC 95%, 1,22–2,50).
Transtorno alimentar
Uma metanálise de cinco estudos primários relatou prevalência combinada de transtornos alimentares em pessoas trans e não binárias de 17,70% (n = 1953; IC 95%, 16,32–19,08; I², 91,3%). Uma metanálise por subgrupo de gênero relatou maior prevalência ao longo da vida de transtornos alimentares em homens trans (19,46%; n = 1327; IC 95%, 17,72–21,21; I², 89,9%) do que em mulheres trans (14,72%; n = 627; IC 95%, 12,45–16,98; I², 92,7%).
Transtornos do neurodesenvolvimento
Uma metanálise de 25 estudos relatou uma estimativa combinada de prevalência de 11% (n = 8662; IC 95%, 8–16) para transtorno do espectro autista (TEA) em populações trans e não binárias, embora 13 estudos primários tenham incluído crianças e jovens. Uma revisão narrativa relatou prevalência estimada entre 5,5-29,6% de adultos trans e não binários em estudos clínicos com pessoas com TEA. A variação na prevalência pode ser parcialmente atribuída às mudanças nos critérios diagnósticos de TEA e a maior conscientização sobre o transtorno. Ambas as revisões reconhecem que a heterogeneidade nos estudos primários é uma limitação, mas concluem que TEA deve ser mais prevalente na população trans e não binária que entre as pessoas cisgênero. Uma única revisão narrativa, incluindo três estudos primários sobre transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) em adultos trans e não binários, relatou maior prevalência em comparação com adultos cisgênero, com estimativas variando de 4,1% a 11%.
Discussão
Críticas aos estudos primários foram muito frequentes nas revisões, dentre elas: potencial viés de mensuração, graças a diferentes definições de desfecho e formas de obtenção de dados nos estudos primários, bem como a validade incerta de instrumentos de triagem e diagnóstico em populações trans e não binárias; o viés de seleção, pelo uso de amostragem por conveniência, amostragem em rede (“bola de neve”) e recrutamento em serviços de saúde relacionados a gênero, que não refletem a população trans mais ampla de interesse; a limitação na generalização dos achados pelo predomínio de participantes brancos, predominantemente norte-americanos. Além disso, vários estudos apontaram um engajamento limitado dos pesquisadores com as comunidades trans e não binárias.
Essa revisão encontrou evidências consistentes de piores desfechos de saúde mental em adultos trans e não binários. As estimativas combinadas de prevalência sugerem que metade das pessoas trans e não binárias tem ideação suicida e quase um terço (29%) realizará pelo menos uma tentativa de suicídio na vida (prevalências maiores do que as encontradas na população em geral). Nenhuma revisão avaliando a mortalidade por suicídio foi encontrada, mas os estudos primários relatam uma maior mortalidade por suicídio nas pessoas trans e não-binárias quando comparadas com a população em geral.
Esse trabalho serve para iluminar as graves lacunas no conhecimento sobre a saúde mental de minorias de gênero. Não há estimativas robustas de prevalência de transtornos mentais comuns, como depressão e ansiedade, em decorrência dos dados populacionais limitados e problemas na síntese de evidências de estudos primários heterogêneos.
Poucas revisões apresentaram resultados desagregados sobre identidades de gênero específicas, considerando as pessoas trans e não-binárias como um grupo homogêneo. Ignorar a diversidade dentro da comunidade trans e não binária oculta disparidades sutis nessa população, uma vez que estudos primários mostram riscos distintos de desfechos em saúde para pessoas transmasculinas e transfemininas, por exemplo. Ademais, dados descrevendo a saúde mental de pessoas não binárias estavam praticamente ausentes.
Dentro das comunidades trans e não binárias, a experiência de vulnerabilidade não é universal e uma perspectiva interseccional é necessária para compreender o papel de múltiplos sistemas de poder nos desfechos de saúde mental. Várias revisões destacaram a escassez de evidências sobre o papel da raça nas vivências de grupos dissidentes de gênero. A raça raramente foi relatada ao descrever os dados demográficos dos participantes dos estudos primários e, quando documentada, a maioria dos participantes era branca. Além disso, há variações nas experiências de pessoas trans e não binárias, dependendo do contexto cultural, religioso e legal de onde residem. Por fim, faz-se necessário pesquisas com participantes que vivam fora da América do Norte e da Europa Ocidental para compreender melhor o panorama global e refletir conceituações culturalmente específicas de identidade de gênero. Este estudo mostra-se oportuno, considerando o atual clima sociopolítico, que tem apresentado um aumento da hostilidade contra pessoas trans e não binárias em âmbito global.
Limitações
A identidade de gênero frequentemente foi mal definida e muitas vezes não ficava claro se pessoas não binárias estavam incluídas nas populações dos estudos. Muitas revisões não especificaram os grupos de comparação em suas perguntas de pesquisa, refletindo a falta de grupos controles adequados na literatura primária. Alguns estudos utilizaram homens cisgênero que fazem sexo com homens como comparador, mas a experiência compartilhada do estresse de minoria reduz a validade externa dos achados para a população geral.
Fragilidades metodológicas dos estudos primários podem ter sido fonte de vieses, especialmente o viés de mensuração e o viés de seleção (o uso de amostras potencialmente enviesadas pode ter ocorrido pela dificuldade no recrutamento de participantes).
Autoria

Tayne Miranda
Editora médica de Psiquiatria da Afya ⦁ Residência em Psiquiatria pela Universidade de São Paulo (USP) ⦁ Mestranda em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP) ⦁ Médica pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) ⦁ Psiquiatra do PROADI-SUS pelo Hospital Israelita Albert Einstein ⦁ Foi Psiquiatra Assistente do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo
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