PASC: a cobertura específica para anaeróbios é necessária?
O senso comum é o de que as bactérias anaeróbias desempenham um papel crucial na microbiologia da pneumonia aspirativa comunitária (PASC), pelo fato de serem componentes da microbiota oral e gastrointestinal. Entretanto, o perfil epidemiológico da PASC se modificou muito nas últimas décadas, de modo que as diretrizes da American Thoracic Society (ATS) e a Infectious Diseases Society of America (IDSA), a partir de 2019, passaram a não mais indicar a cobertura estendida rotineira para anaeróbios na PASC.
Alguns estudos observacionais e um RCT pequeno corroboraram a ausência de benefícios em termos de mortalidade com a cobertura específica para anaeróbios, mas as amostras limitadas não tiveram poder estatístico suficiente para descartar pequenas diferenças.
O presente estudo, publicado em 2024 na CHEST, teve como objetivo ampliar as evidências sobre esse tema tão importante, com um N que superou em 4 vezes o conjunto dos estudos mencionados previamente, potencializando a capacidade discriminativa entre os desfechos de interesse.
Panorama geral da PASC
A pneumonia aspirativa comunitária (PASC) destaca-se por sua alta mortalidade, com risco relativo de 3,62 (IC 95%: 2,65 a 4,96) em relação às outras apresentações de PAC.
O papel dos anaeróbios, antes tido como prioritário, foi redefinido em estudos prospectivos mais recentes, com taxa geral de isolamento de 0,5%, o que representa apenas 16% dos casos em que a microbiologia é positiva.
Abrir mão da cobertura estendida para anaeróbios tem se mostrado uma conduta segura, que não aumenta a mortalidade e permite mitigar o risco de complicações, como a colite por Clostridioides difficile, além de minimizar a pressão seletiva para a resistência antimicrobiana.
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Metodologia
Trata-se de um estudo de coorte retrospectivo e multicêntrico que buscou responder se, entre os pacientes internados por pneumonia aspirativa comunitária (PASC), há diferenças em termos de mortalidade intra-hospitalar por todas as causas (desfecho primário) e risco de colite por Clostridioides difficile (desfecho secundário) quando se emprega uma antibioticoterapia com cobertura limitada para anaeróbios (CLA) em relação a uma cobertura estendida (CEA)?
Foram incluídos pacientes internados em 18 hospitais da cidade de Ontario, no Canadá, entre 2015 e 2022, por meio da base de dados GEMINI, que receberam o diagnóstico de PASC pelo médico assistente e que foram, portanto, tratados com antibioticoterapia parenteral de primeira linha nas primeiras 48 horas de admissão.
Cobertura de anaeróbios | |
Limitada (CLA) | Estendida (CEA) |
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Cobertura apenas parcial para anaeróbios, incluindo espécies de Peptostreptococcus da cavidade oral. | Cobertura da maioria dos anaeróbios orais e intestinais, incluindo o grupo Bacteroides fragilis. |
Os critérios de exclusão foram óbito precoce que precedesse o início da antibioticoterapia, abscesso ou empiema pulmonar e antibioticoterapia oral exclusiva.
Os participantes foram pareados com base na idade, sexo, institucionalização, localidade do hospital de admissão, comorbidades (índice de Charlson) e gravidade com base no modified Laboratory-based Acute Physiology Score (mLAPS).
A análise modificada de intenção de tratamento valeu-se da exposição ao mesmo antimicrobiano por pelo menos 1 dia ou até a morte ou alta hospitalar. Um modelo de risco competitivo foi utilizado para avaliar o tempo para a alta hospitalar com o contraponto de eventos de óbito.
O balanceamento das covariáveis foi realizado com um método baseado em escore de propensão.
Resultados
O estudo incluiu 3.999 indivíduos, distribuídos na taxa de 2:1 para os grupos CLA e CEA: 2.863 e 1.316 pacientes, respectivamente.
As características basais dos grupos foram semelhantes, por exceção do hospital e ano de admissão. A proporção de exposição ao grupo CLA aumentou entre 2015 e 2021, fato atribuído à adoção crescente das diretrizes da ATS/IDSA.
A identificação das bactérias causadoras foi possível em apenas 0,4% dos casos (17 pacientes), incluindo Klebsiella spp, Escherichia coli e Staphylococcus aureus.
A mediana de duração da antibioticoterapia foi de 5 (IQR 3 a 7 dias) e 7 dias (IQR 4 a 8 dias) nos grupos CLA e CEA, respectivamente.
A mortalidade intra-hospitalar foi de 30,3% vs. 32,1% e a colite por C. difficile foi diagnosticada em menos de 0,2% e entre 0,8 e 1,1% nos grupos CLA e CEA, respectivamente.
Os dados analisados após o escore de propensão demonstraram que, para mortalidade intra-hospitalar, a diferença de risco ajustada entre os grupos CLA e CEA foi de 1,6% (IC 95%: – 1,7% a 4,9%) e, no modelo de risco competitivo, razão de chances padrão (sHR) ajustada para sobrevivência à alta hospitalar foi de 0,92 (IC 95%: 0,84 a 1,0). Por sua vez, o risco de colite por C. difficile foi de 1% (IC 95%: 0,3 a 1,7%).
As readmissões em 30 dias foram de 18,5% e 18,3% nos grupos CLA e CEA, respectivamente.
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Conclusão e mensagens práticas: anaeróbios na PASC
- A cobertura estendida para anaeróbios diante de casos de pneumonia aspirativa comunitária que demandam internação e terapia parenteral é, provavelmente desnecessária, não se associando a melhora da mortalidade intra-hospitalar e trazendo risco de complicações, como a colite por Clostridioides difficile.
- A generalização dos dados para a população brasileira é limitada, por se tratar de amostra exclusiva da população canadense. Entretanto, há plausibilidade em transpor essas condutas ao nosso cenário, tendo em vista a universalidade dos princípios fisiopatológicos subjacentes.
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