Infelizmente, embora a dor seja comum em crianças e adolescentes de todas as idades, ela ainda é bastante negligenciada. Portanto, é imprescindível que o pediatra identifique a dor, avaliando-a corretamente e indicando o tratamento adequado. Em 17 de outubro de 2024, o Departamento Científico de Medicina da Dor e Cuidados Paliativos da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) publicou a diretriz “Dores comuns em pediatria: avaliação e abordagem”. Pontos importantes desta diretriz estão sintetizados a seguir.
Definição de dor pela IASP
A IASP (International Association for the Study of Pain) define a dor como “uma experiência sensitiva e emocional desagradável associada, ou semelhante àquela associada, a uma lesão tecidual real ou potencial”, sendo que “a incapacidade de comunicação não invalida a possibilidade de um ser humano ou um animal sentir dor”.
A dor é multidimensional
A sensação de dor faz parte de um contexto biopsicossocial que inclui fatores biológicos (idade, gênero, genética, tipo e extensão da lesão ou doença associada), fatores psicológicos (ansiedade, medo e experiências prévias) e fatores socioculturais (ambiente, culturas, crenças, influência familiar e suporte social). Estes fatores modificam a maneira de como a dor é vivenciada, alterando a transmissão de estímulos nociceptivos ao cérebro.
Experiências prévias de doença e internação hospitalar também podem modificar a sua percepção e a sua capacidade de lidar com a dor.
Consequências negativas da dor não tratada
A dor não tratada pode levar ao desenvolvimento de memórias ruins, produzindo mecanismos disfuncionais de enfrentamento de novas experiências dolorosas. Além disso, compromete o desenvolvimento cerebral e possibilita a evolução para dores crônicas no futuro adulto.
Anatomia da dor
As vias neurais são formadas ainda na vida intrauterina e a sua maturação persiste até a idade adulta. Com uma idade gestacional de 26 semanas, o feto demonstra maturidade para a transmissão aferente da dor, apresentando comportamento específico como resposta a uma lesão, incluindo sinais autonômicos, hormonais e metabólicos. Quando o bebê nasce, as vias neurais estão completamente formadas, apesar da imaturidade, e passam por processos de mielinização.
As formas de enfrentamento da dor são influenciadas pelas habilidades cognitivas e pelo processamento das emoções, que se desenvolvem ao longo do tempo e é por isso que crianças expressam a dor de forma distinta dos adultos.
Fisiologia da dor
- Dor nociceptiva: a lesão tecidual ativa nociceptores que podem responder ao calor, frio, vibração, estímulos de estiramento e substâncias químicas liberadas pelos tecidos em resposta a uma inflamação, ruptura tecidual ou privação de oxigênio.
- Dor nociceptiva visceral: ocorre pela ativação de nociceptores nas vísceras. Exemplos: distensão gasosa, compressão por tumores, infecções.
- Dor nociceptiva somática: ocorre pela ativação de nociceptores em tecidos superficiais ou profundos. Exemplos: câimbra, entorse, ferimentos por objetos cortantes.
- Dor neuropática: ocorre devido a qualquer processo que lesione os nervos, provocando danos estruturais e disfunção das células nervosas no sistema nervoso periférico ou central. Características comumente relatadas: ardor, choque, fisgada, formigamento, picada, prurido, queimação, sensação de frio.
- Dor mista: presença de dor nociceptiva e neuropática.
Duração da dor
- Dor aguda:
- Ativação de nociceptores por lesão atual (exemplo: pós-operatório).
- Ativa o sistema nervoso simpático: pode alterar a frequência cardíaca, frequência respiratória, saturação de oxigênio e aumentar a pressão arterial.
- Serve de alerta ao organismo.
- Cessa com a resolução ou cura da doença
- Duração < 3 meses.
- Boa resposta ao tratamento.
- Dor crônica:
- Sensibilização e anormalidades do sistema nervoso central.
- Adaptação fisiológica do organismo: não há alteração de sinais vitais. Está remotamente associada a uma lesão.
- Não serve de alerta e traz sofrimento.
- Não cessa com a resolução ou cura da doença.
- Duração > 3 meses.
- Difícil tratamento.
Avaliação da dor conforme a faixa etária
Parâmetros fisiológicos aplicados isoladamente não são efetivos para a avaliação de dor. É recomendado o uso de escalas segundo a idade e o nível cognitivo.
Faixa etária |
Escala | Observações |
Neonatos prematuros e a termo |
Neonatal Facial Coding System – NFCS |
Pontuação máxima: 8 Dor: pontuação ≥ 3 |
Até 3 anos |
Faces Legs Activity Cry Consolability Pain Scale – FLACC |
Pontuação máxima:10 0: Relaxada 1 a 3: dor leve 4 a 6: dor moderada 7 a 10: dor intensa |
Pré-escolares |
Escala de cores |
Verde a vermelho |
Esquema corporal |
A criança pinta em um desenho a parte do corpo que dói | |
4 a 12 anos |
Faces Pain Scale Revised – FPS-R (Escala facial de dor revisada) |
A criança aponta a face que representa a sua dor |
≥ 8 anos |
Escala Visual Analógica – EVA ou VAS | A criança aponta para que lado está sua dor |
Escala de classificação numérica 0-10/Escala de Avaliação Verbal |
Pontuação máxima:10 0: nenhuma dor 10: Dor mais forte possível | |
Criança com alterações de desenvolvimento ou deficiências | Revised Faces Legs Activity Cry Consolability Pain Scale – R-FLACC | Pontuação máxima:10
0: Relaxada 1 a 3: dor leve 4 a 6: dor moderada 7 a 10: dor intensa |
Nota: Não há escala específica para avaliação de dor neuropática.
Fonte: Adaptado de Sociedade Brasileira de Pediatria, 2024
Abordagem da dor
Atualmente, a abordagem da dor em pediatria segue a recomendação da “escada de dois degraus” preconizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Legenda: AINEs – anti-inflamatórios não-esteroidais
Fonte: Adaptado de Sociedade Brasileira de Pediatria, 2024
Estratégias não farmacológicas
- Neonatos e lactentes:
- Redução de luzes e de ruídos;
- Método Canguru ou contato pele a pele;
- Aleitamento materno;
- Toque facilitador (facilitated tucking);
- Enrolamento (swaddling) – até a idade de 6 meses;
- Música instrumental e canto de capela, até 15 minutos, em prematuros > 31 semanas de idade gestacional.
- Crianças e adolescentes:
- Distrações: bolinhas de estresse, brinquedos, cata-vento, livros, vídeos ou jogos eletrônicos;
- Fisioterapia, terapia ocupacional e educação física;
- Psicoterapia;
- Técnicas de dessensibilização;
- Abordar e cuidar da espiritualidade da criança;
- Modalidades integrativas: acupuntura, aromaterapia, biofeedback, massagem, relaxamento muscular progressivo, respiração diafragmática;
- Voltar para a rotina (em geral, a vida normaliza primeiro e a dor só reduz posteriormente): escola, esporte, sono, vida social.
Estratégias farmacológicas
Analgésicos simples
- Paracetamol: liberado desde o nascimento. A eficácia da apresentação IV (intravenosa) é semelhante à VO (via oral). Portanto, o uso IV deve ser restrito a situações em que a VO não é possível;
- Dipirona: liberado para crianças a partir de 3 meses ou com peso > 5 kg.
Anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs)
- Ibuprofeno e cetoprofeno: liberados a partir de 6 meses.
Opioides
- Práticas essenciais:
- Devem ser prescritos somente em indicações apropriadas e por médicos treinados, avaliando-se riscos e benefícios;
- Seu uso, impacto na dor e efeitos adversos devem ser continuamente monitorados;
- Deve haver uma programação para continuação, diminuição gradual ou descontinuação de opioides conforme o quadro da criança, com ciência da criança e de sua família;
- Cuidados na aquisição, armazenamento e descarte.
- Morfina: primeira linha de opioide no tratamento da dor de moderada a intensa;
- Tramadol:
- Opioide fraco;
- Pode ocasionar náuseas e vômitos;
- Reduz limiar convulsivo;
- Liberado pela Anvisa para crianças a partir de um ano, mas o uso é recomendado somente a partir de 12 anos devido à escassez de estudos na faixa etária pediátrica;
- Contraindicações: apneia de origem central, obesidade mórbida, pós-operatório de cirurgia otorrinolaringológica;
- Codeína: opioide ineficaz e não seguro, contraindicado em pediatria.
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