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Imaginem as seguintes situações (relatos de caso publicados por Abrantes et al., 2016)1.
- Paciente do sexo feminino, 39 anos, G2P1, com antecedentes pessoais de lúpus eritematoso sistêmico, iniciou episódios de dor mamilar bilateral intensa desde a segunda semana pós-parto, associada a alteração trifásica da coloração do mamilo durante e após a amamentação. Foi estabelecido o diagnóstico de fenômeno de Raynaud baseado na história clínica e após a realização de teste de provocação com reprodução imediata de sintomas e sinais. Esta paciente foi medicada com nifedipina, tornando-se assintomática após quatro semanas de tratamento;
- Paciente do sexo feminino, 30 anos, G1P1, com antecedentes pessoais irrelevantes, apresentou episódio doloroso em seio direito provocado pela amamentação e caracterizado por palidez mamilar, cianose e hiperemia subsequentes. Esta paciente recusou tratamento farmacológico. O uso de bombas de esvaziamento mamário resultou em resolução de sintomatologia.
Estas duas situações clínicas referem-se a dois casos de fenômeno de Raynaud (FR) em mamilos, causa tratável de dor durante o aleitamento materno e motivo de abandono da amamentação, devendo, portanto, ser identificado e tratado o mais rápido possível1.
O FR foi descrito pela primeira vez em 1862 pelo médico francês Maurice Raynaud. Caracteriza-se pela ocorrência de vasoespasmo intermitente em pequenas artérias, causando isquemia intermitente e subsequente vasodilatação reflexa. A isquemia se manifesta como palidez seguida de desoxigenação que resulta em cianose, com consequente vasodilatação reflexa e reperfusão, ocasionando eritema. As alterações episódicas de cor ocorrem de forma sequencial (palidez, cianose, rubor) em extremidades, com duração de alguns minutos a horas, geralmente desencadeadas pelo frio e/ou estresse vascular. O FR primário ocorre sozinho, sem doenças concomitantes, geralmente é benigno e tem prognóstico favorável. O FR secundário ocorre em uma variedade de doenças com progressão e prognóstico muito variáveis, a maioria desfavorável devido ao desenvolvimento de necrose e gangrena1,2,3,4. Causas mais comuns de FR secundário podem ser resumidas no quadro 14.
Quadro 1: Causas comuns de Fenômeno de Raynaud secundário4.
Causas | Exemplos |
Doença autoimune (reumatológica) | Esclerodermia
Lúpus eritematoso sistêmico Artrite reumatoide Polimiosite / Dermatomiosite |
Doenças arteriais | Doença arterial periférica
Tromboangeíte obliterante (Doença de Buerger) |
Doenças neurológicas e relacionadas | Síndrome do túnel do carpo
Acidente vascular encefálico Síndrome do desfiladeiro torácico |
Doenças hematológicas | Mieloma múltiplo
Crioglobulinemia |
Trauma | Utilização de instrumentos que vibram
Congelamento (frio) |
Doenças endócrinas | Hipotireoidismo |
Medicamentos | Betabloqueadores
Anfetaminas Narcóticos Alguns quimioterápicos Estrogênio Clonidina |
*Adaptado de Ratchford e Evans, 20154.
O FR é comumente visto em mãos, pés e orelhas. Embora menos comum, há relatos de FR envolvendo a língua3,5. O FR de mamilos foi descrito pela primeira vez em 1977, por Lawlor-Smith e Lawlor-Smith, que relataram cinco mulheres com o FR associado à amamentação6.
O FR de mamilos afeta 20% das mulheres em idade fértil7. Mulheres em idade fértil possuem maior risco de desenvolver o FR, pelo menos parcialmente, por resposta vasomotora excessiva relativa ao aumento dos níveis de estrogênios. A elevação dos níveis de estrogênios aumenta a resposta do músculo liso à ativação de α2c-adrenoreceptores. Esta hiperresponsividade, aliada à exposição ao frio, promove vasoconstrição intensa de artérias e arteríolas da pele. O estresse emocional (o próprio aleitamento materno é tido como situação de grande estresse emocional por um número considerável de mulheres no puerpério) induz à liberação de noradrenalina pelo sistema nervoso simpático. A noradrenalina, por sua vez, se liga a receptores adrenérgicos vasculares regulados por estrogênios, o que pode culminar em FR1,3.
Os critérios para diagnóstico de FR mamilar, propostos por Barrett et al. em 2013 incluem:
- A. Dor mamilar moderada a intensa, com duração prolongada (em geral, em período igual ou superior a quatro semanas);
- B. Dois ou mais dos seguintes critérios:
1) Modificações bi ou trifásicas da coloração do mamilo, principalmente por exposição ao frio;
2) Sensibilidade ou modificações da cor das mãos e/ou dos pés por exposição ao frio;
3) Sem resposta ao tratamento com medicamentos antifúngicos por via oral (informação valiosa, aumentando a possibilidade do diagnóstico de FR mamilar).
C. Confirmação: Resposta positiva ao tratamento direcionado para o FR1,3.
As lactantes com FR mamilar devem ser aconselhadas a manter as mamas e mamilos aquecidos e a evitar temperaturas frias e substâncias vasoconstritoras, como nicotina e cafeína. O uso de bombas de esvaziamento mamário pode resultar em franca redução e, subsequentemente, em desaparecimento da sintomatologia. Em relação à abordagem farmacológica, o medicamento de primeira linha para o tratamento do FR mamilar é o antagonista dos canais de cálcio nifedipina, aprovado pela Academia Americana de Pediatria para o uso materno durante a amamentação, atuando como vasodilatador. É recomendada a prescrição de nifedipina de liberação lenta, na dose de 30 a 60 mg/dia, de duas semanas até ao fim do período de amamentação. Alguns efeitos colaterais decorrentes do uso da nifedipina incluem: náuseas, tonturas, cefaleia, taquicardia e hipotensão.
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Na presença de qualquer efeito adverso, é aconselhada a diminuição da dose diária até 10 mg. No entanto, a nifedipina é um medicamento considerado seguro durante o aleitamento materno, passando para o leite materno somente em baixas doses, <5% da dose materna1. Se uma causa secundária é encontrada, então a terapêutica deve ser direcionada para a causa de base4.
Lactantes com dor mamilar devem ser sempre questionadas especificamente sobre os sintomas de FR. Quando o diagnóstico de FR mamilar é efetuado precocemente, a lactante poderá ser tratada adequadamente, evitando o tratamento equivocado de mastite e permitindo o sucesso do aleitamento materno, sem dor4. Dessa forma, tanto a mãe quanto o bebê podem usufruir dos benefícios imunológicos, psicológicos, nutricionais e sociais da amamentação3. Por fim, é essencial que as lactantes sejam informadas de que o FR mamilar pode ocorrer em gestações/aleitamentos subsequentes4.
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Referências:
- Abrantes A, Djokovic D, Bastos C, Veca P. Fenómeno de Raynaud do mamilo em mulheres a amamentar: relato de três casos clínicos. Rev Port Med Geral Fam. 2016; 32( 2 ): 136-142.
- Tomčík M. Raynaud’s phenomenon. Cas Lek Cesk. 2016;155(6):310-318.
- Barrett ME, Heller MM, Fullerton Stone H, Murase JE. Raynaud Phenomenon of the Nipple in Breastfeeding Mothers: An Underdiagnosed Cause of Nipple Pain. JAMA Dermatol. 2013;149(3):300–306.
- Ratchford EV, Evans NS. Raynaud’s phenomenon. Vascular Medicine. 2015; 20(3): 269–271.
- Rodríguez-Criollo JA, Jaramillo-Arroyave D. Fenómeno de Raynaud. Revisión. Rev. Fac. Med. 2014;62(3):455-64.
- Lawlor-Smith L, Lawlor-Smith C. Vasospasm of the nipple–a manifestation of Raynaud’s phenomenon: case reports BMJ 1997; 314:644.
- Mirón Muñoz FJ, Camacho Martos MD. Fenómeno de Raynaud y el amamantamiento doloroso. Ver Clín Med Fam. 2012; 5(1): 51-52
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