Papel de bactérias e vírus na transição de sibilância para asma em pré-escolares
Recentemente, o periódico Pediatric Allergy and Immunology publicou um artigo muito interessante onde os autores resumem o conhecimento atual e os desenvolvimentos na epidemiologia da infecção da asma em crianças, descrevendo o impacto conhecido de cada agente individual e os mecanismos de transição da sibilância recorrente para a asma. A revisão aborda os aspectos fisiopatológicos e mecanismos que podem contribuir para a transição da sibilância recorrente para a asma persistente na infância. Pontos relevantes da publicação estão sintetizados a seguir.
Asma
A asma é uma condição complexa com sintomas variáveis, obstrução do fluxo de ar e inflamação e que impacta significativamente a qualidade de vida dos pacientes. A sibilância é um sintoma frequente, e muitas crianças que apresentam sibilos no início da vida não continuam a apresentar esse sintoma nos anos escolares subsequentes, inclusive, há controvérsias sobre se esses episódios no início da vida são de fato considerados asma. Dessa forma, é importante identificar quais crianças com sibilância continuarão a ter sintomas persistentes. Fatores como história natural, gatilhos e atopia podem influenciar o prognóstico. Infecções do trato respiratório, sejam virais ou bacterianas, estão frequentemente associadas a episódios de sibilos e podem ser um indicativo de persistência da asma.
O início e a progressão da asma são sustentados pela predisposição genética, sendo a sensibilização alérgica um dos principais determinantes. Neste contexto, os micróbios impulsionam a atividade da asma e os vírus estão presentes durante o seu início. Episódios de sibilância no início da vida, bem como exacerbações de asma em crianças mais velhas, estão associados a vírus respiratórios comuns, principalmente rinovírus (RV). A presença excessiva de bactérias, muitas das quais fazem parte do microbioma, foi identificada em associação com eventos agudos, mas também pode influenciar a persistência da inflamação. A sibilância precoce muitas vezes persiste, “tornando-se” asma. Todavia, não está claro quando/se tal transição acontece. Ademais, características da asma, como remodelação das vias aéreas, já podem estar presentes aos três anos de idade. Vários fatores, incluindo a gravidade da doença, a etiologia viral, a sensibilização alérgica e o expossoma, estão associados à persistência da doença.
Microrganismos e sibilância
A carga da asma e da sibilância deve-se, principalmente, a episódios agudos recorrentes, com infecções respiratórias tendo forte correlação com a maioria das exacerbações da doença. Vírus como rinovírus, vírus sincicial respiratório (VSR), entre outros, foram detectados em até 90% dos episódios agudos de broncoespasmo nos primeiros três anos de vida. Bactérias como Haemophilus influenzae não tipável e Streptococcus pneumoniae também estão associadas à sibilância aguda em crianças. Os mesmos microrganismos estão ligados à sibilância precoce e às exacerbações da asma tanto em crianças quanto em adultos, sugerindo uma fisiopatologia comum entre o broncoespasmo agudo e a asma crônica. É interessante destacar que avanços na detecção molecular e no sequenciamento de próxima geração estão aprofundando a compreensão da epidemiologia microbiana e sua relação com doenças respiratórias em crianças.
Vírus sincicial respiratório (VSR)
O vírus sincicial respiratório (VSR) é um precursor comum de sibilos precoces e é a principal causa de bronquiolite grave em bebês. Sua prevalência em episódios de broncoespasmo varia de acordo com a idade, a estação do ano e a região geográfica.
O VSR está associado a diferentes fenótipos de broncoespasmo, incluindo pós-bronquiolite, bronquiolite aguda, exacerbações de asma e início de asma. Distinguir entre bronquiolite, broncoespasmo agudo e exacerbação da asma é, de fato, muito desafiador. É importante lembrar que o VSR pode causar até 70% dos casos graves de broncoespasmo em recém-nascidos (RN) e crianças pequenas, mas seu impacto diminui em crianças mais velhas e adultos.
Tratamentos como o palivizumabe (anticorpo monoclonal anti-VSR), mostraram reduzir a incidência de broncoespasmo e hospitalizações relacionadas a doenças respiratórias. Atualmente, estão sendo desenvolvidas várias vacinas e terapêuticas candidatas contra o VSR, o que traz esperança na prevenção do broncoespasmo, especialmente nos primeiros anos de vida.
Rinovírus (RV)
Os rinovírus (RV) são detectados em 60-90% das exacerbações de asma em diferentes populações. Três espécies distintas, RV-A, RV-B e RV-C, foram caracterizadas com base na homologia de sequência e incluem mais de 150 sorotipos. Em alguns estudos, o RV-C e o RV-A parecem prevalecer nas exacerbações da asma. As respostas de anticorpos contra estas espécies podem diferenciar crianças asmáticas de crianças saudáveis em idade pré-escolar.
Em pacientes não asmáticos, o RV é o principal patógeno associado ao resfriado comum. No entanto, o RV foi reconhecido como um patógeno não somente de vias aéreas superiores, mas também de inferiores, induzindo a episódios de sibilância igualmente em todas as idades, incluindo crianças em idade pré-escolar, enquanto a predisposição genética, como polimorfismos nos genes do receptor RV-C, também demonstrou aumentar a suscetibilidade. É importante notar que as co-infecções virais, nas quais o RV contribui, são mais frequentes do que inicialmente identificadas.
VSR e RV
As infecções respiratórias superiores, especialmente pelo VSR e RV, têm sido associadas ao desenvolvimento de asma, embora haja controvérsias. Estudos indicam que a bronquiolite grave por VSR na infância aumenta o risco de asma e sensibilização alérgica em longo prazo, mas há limitações nessa relação causal. Além disso, bebês com sibilância induzida por VSR têm maior probabilidade de ter sibilância recorrente e asma. A infecção precoce por RV também aumenta o risco de asma, mais do que a sensibilização a alérgenos ou infecções por VSR.
Fatores genéticos, ambientais e imunológicos contribuem para a persistência da sibilância e os desfechos da asma. A interação complexa entre vírus, microbioma e resposta imune influencia o desenvolvimento da asma, mas ainda há muito a ser compreendido.
Outros vírus
O vírus da influenza e outros patógenos virais, como o bocavírus humano e o metapneumovírus humano, têm sido associados a exacerbações da asma, especialmente em crianças. No entanto, a relação precisa entre esses vírus e a asma ainda não é totalmente compreendida. A imunização contra influenza tem sido eficaz na prevenção de crises de asma, principalmente em adultos.
Outros vírus, como os parainfluenza, enterovírus e coronavírus humanos, também foram detectados em pacientes com asma, mas sua relação direta com a doença é menos clara. Adenovírus e bactérias como Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae e Moraxella catarrhalis também podem estar associados a episódios de sibilos e asma, principalmente em crianças pequenas. A colonização por essas bactérias nas vias aéreas pode contribuir para o desenvolvimento de asma em crianças. Entretanto, o papel exato das bactérias e dos vírus na asma ainda precisa ser mais bem esclarecido.
Mecanismos de progressão da doença: indução viral de remodelação
Os mecanismos de persistência e remodelação na asma ainda não estão totalmente esclarecidos, mas sabemos que a atopia e a inflamação alérgica desempenham papéis importantes nessas alterações nas vias aéreas. Infecções por RV podem contribuir para a remodelação das vias aéreas, atrasando o reparo epitelial e amplificando processos como a angiogênese e a deposição de proteínas da matriz extracelular. Estudos mostram que índices de remodelação das vias aéreas já estão presentes em crianças com episódios graves de sibilância durante os anos pré-escolares, e a duração da hiperresponsividade das vias aéreas é prolongada em crianças asmáticas atópicas em idade escolar. Além disso, as infecções virais, especialmente por RV, podem acelerar o remodelamento das vias aéreas e aumentar a hiperresponsividade das vias aéreas, contribuindo para um fenótipo asmático mais estável, especialmente em indivíduos atópicos. O epitélio desempenha um papel crucial na asma, com uma liberação anormal de citocinas e uma capacidade reduzida de cicatrização de feridas após uma infecção por RV, destacando a importância da função epitelial no desenvolvimento ou persistência da asma induzida por vírus.
Respostas imunes antivirais e suscetibilidade de atópicos à infecção viral
Diferentes padrões de liberação de citocinas ocorrem durante doenças virais com broncoespasmo. Níveis elevados de citocinas Th2 foram encontrados em lactentes hospitalizados por bronquiolite por VSR, enquanto IL-3 e IL-12p40 elevados foram associados à sibilância recorrente. Respostas Th2/Th17 distorcidas e respostas de IFN-γ prejudicadas após infecções por VSR foram associadas a um aumento na sibilância recorrente. Linfóides inatos do tipo 2 induzem IL-4 e IL-13 durante infecções por VSR, amplificando a resposta Th2. Níveis baixos de IFNα foram detectados em crianças com asma, mas aumentaram durante exacerbações.
A atopia aumenta a susceptibilidade a infecções respiratórias e de complicações em longo prazo após infecções virais. Respostas imunes prejudicadas a infecções por RV foram observadas na presença de inflamação tipo 2. Por outro lado o óxido fracionado exalado (FeNO), um marcador de inflamação epitelial das vias aéreas e um marcador de resposta T2, está aumentado e positivamente associado a marcadores de atividade da doença em pré-escolares asmáticos, como o número de episódios de sibilância e dias com asma, potencialmente contribuindo para a cronicidade da doença.
Por fim, a hipótese PreDicta propôs que a predisposição atópica aumenta os efeitos imunológicos e de longo prazo da doença sibilante induzida por vírus. A maturação imunológica está comprometida em indivíduos atópicos, com indução subótima de Th1 e IL-10, potencialmente implicada no início de doenças relacionadas à atopia. Além disso, as respostas T2 aumentadas podem aumentar outras anormalidades na imunidade antiviral. É plausível que o aumento do número e o momento dos eventos induzidos por vírus em um contexto genético alterado reprogramem as respostas imunes inatas, adaptativas e/ou regulatórias em direção a um padrão crônico de inflamação.
Conclusão
Os vírus respiratórios, principalmente os RV, e a disbiose bacteriana foram identificados como fatores principais que contribuem para o desenvolvimento de sibilância e exacerbações de asma em crianças mais velhas. A sibilância durante os primeiros anos de vida está fortemente relacionada com o posterior desenvolvimento de asma, embora não esteja claro quando ou se essa transição ocorrerá. Características da asma, como remodelação das vias aéreas, podem estar presentes desde cedo, enquanto fatores como predisposição genética, deficiências na barreira epitelial das vias aéreas e a presença de atopia contribuem para a manutenção da inflamação e dos sintomas da doença. É possível que a morbidade e a gravidade da doença, os tipos de vírus envolvidos e o contexto da exposição possam aumentar ainda mais o risco de desenvolver asma.
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