Crianças com distúrbios funcionais abdominais (DFAs), como a síndrome do intestino irritável (SII) e dor abdominal funcional não especificada (DAF-NE), frequentemente apresentam sintomas crônicos e incapacitantes. Essas condições afetam negativamente a qualidade de vida e geram frustração para as famílias, que muitas vezes buscam soluções farmacológicas imediatas. Embora terapias como a hipnoterapia e a terapia cognitivo-comportamental (TCC) tenham evidência sólida, muitos pais e cuidadores insistem em medicamentos. Neste contexto, durante o congresso da European Society for Paediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition (ESPGHAN 2025), foram exploradas as opções farmacológicas atualmente disponíveis, seus mecanismos, limitações e implicações práticas.
Compreendendo os mecanismos dos sintomas
Para abordar os tratamentos de forma clara, é fundamental explicar aos pais os mecanismos fisiopatológicos de maneira compreensível:
- Hipervigilância central: o cérebro responde de forma exagerada aos sinais vindos do intestino.
- Hipersensibilidade visceral: estímulos comuns (como gases ou distensão) são interpretados como dor intensa pelo sistema nervoso.
Esses mecanismos resultam nos principais sintomas relatados: dor abdominal e urgência/insistência sintomática.
Tratamentos farmacológicos com evidência positiva
Apesar da escassez de estudos em pediatria, três medicamentos receberam recomendações positivas condicionais nas diretrizes mais recentes:
Domperidona
- Mecanismo: agonista dopaminérgico periférico, promove esvaziamento gástrico e peristaltismo.
- Evidência: dois estudos com melhora modesta em “sucesso do tratamento”; impacto na dor menos claro.
- Conclusão: sugestão condicional de uso, sem dados robustos de segurança.
Ciproeptadina
- Mecanismo: anti-histamínico com ação serotoninérgica fraca e propriedades anticolinérgicas.
- Evidência: único estudo pequeno, com eficácia significativa; conhecido por causar sedação e ganho de peso.
- Conclusão: recomendação positiva condicional, com base limitada, mas promissora.
Óleo de hortelã-pimenta (cápsulas com revestimento entérico)
- Mecanismo: relaxante da musculatura lisa, reduz hipersensibilidade visceral e inflamação local.
- Evidência: dois estudos pediátricos mostraram eficácia modesta; segurança considerada boa.
- Conclusão: recomendação positiva condicional, especialmente em adolescentes.
Tratamentos não recomendados ou sem evidência
- Antiespasmódicos comuns (ex: escopolamina, diciclomina): ausência total de estudos pediátricos.
- Mebeverina: estudo recente com grande número de pacientes mostrou ausência de diferença em relação ao placebo na população pediátrica, diferente dos dados em adultos.
- Conclusão: recomendação negativa para mebeverina na pediatria
O papel do efeito placebo e da comunicação clínica
Um dos achados mais relevantes é a magnitude do efeito placebo em crianças com DFAs, estimado em cerca de 41%. Destaques:
- Placebo com rótulo aberto funciona melhor do que não tratar.
- Frases positivas e expectativas realistas aumentam a chance de sucesso terapêutico.
Isso mostra que a forma como comunicamos é tão importante quanto o tratamento em si.
Conclusão
As terapias farmacológicas para DFAs pediátricos ainda carecem de evidência robusta. As recomendações atuais são condicionais e limitadas a poucos fármacos. Estratégias como educação adequada, manejo de expectativas e comunicação empática são ferramentas clínicas fundamentais. O efeito placebo reforça o papel da relação médico-paciente no cuidado dessas crianças.
Mensagens práticas
- Explique os mecanismos de forma acessível: cérebro mais sensível, intestino mais reativo.
- Use medicamentos com cautela: apenas domperidona, ciproheptadina e óleo de hortelã-pimenta possuem recomendação condicional.
- Evite antiespasmódicos sem evidência: como escopolamina, diciclomina e mebeverina.
- Valorize o poder da expectativa: uma comunicação positiva pode aumentar o sucesso do tratamento.
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