A nutrição tem papel central no manejo das desordens funcionais gastrointestinais, especialmente nos transtornos de dor abdominal relacionados à interação intestino-cérebro, como a dispepsia funcional e a síndrome do intestino irritável (SII). Embora frequentemente percebida como uma intervenção simples, sua implementação inadequada pode levar a consequências clínicas relevantes, como má nutrição e transtornos alimentares.
Durante o congresso da European Society for Paediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition (ESPGHAN 2025), foi discutido de forma objetiva o papel da nutrição nesses quadros pediátricos, explorando a evidência científica, dilemas clínicos e futuras direções. Veja abaixo os principais tópicos abordados:
A percepção dos pacientes e os riscos da restrição alimentar espontânea: Cuidado!
A maioria das crianças com dor abdominal funcional associa os sintomas à ingestão de certos alimentos. Muitas acabam adotando restrições alimentares por conta própria, e poucas recebem orientação nutricional especializada, mesmo em centros de referência. Isso aumenta o risco de deficiência nutricional e transtornos alimentares.
Estratégias gerais para dispepsia funcional
O manejo nutricional na dispepsia funcional é semelhante ao da gastroparesia. Recomendações incluem:
- Refeições pequenas e frequentes;
- Redução de gorduras e fibras insolúveis;
- Evitar bebidas gaseificadas;
- Preferir partículas alimentares pequenas para facilitar o esvaziamento gástrico.
O objetivo é manter a nutrição oral sempre que possível, evitando estratégias invasivas.
O dilema do medo alimentar e o risco da alimentação enteral
A hipervigilância e o medo alimentar podem perpetuar a dor e a restrição alimentar. Isso gera um desafio clínico crescente: o aumento da demanda por alimentação jejunal em crianças sem indicação nutricional objetiva. Diretrizes sugerem que a alimentação enteral só deve ser considerada diante de:
- Evidência objetiva de desnutrição;
- Tentativas prévias de tratamento clínico adequado;
- Avaliação dos riscos de transtornos alimentares
Dieta com baixo teor FODMAP
Apesar de amplamente estudada em adultos com SII, a dieta com baixo FODMAP apresenta evidências limitadas e com viés em pediatria. Estudos multicêntricos recentes mostram taxa de sucesso modesta (30% em SII e 17% em dor abdominal funcional não especificada), sem supervisão dietética estruturada. As diretrizes europeias não recomendam seu uso rotineiro em crianças, alertando para os riscos de má nutrição e transtornos alimentares. Quando utilizada, deve haver:
- Avaliação de risco de transtornos alimentares;
- Implementação supervisionada;
- Reavaliação após 4–6 semanas e reintrodução gradual
Outras abordagens dietéticas
- Fibras solúveis: mostram alguma eficácia em metanálises recentes, sendo consideradas uma possível intervenção para SII;
- Deficiências de dissacaridases: dados mostram redução de lactase em até 48% das crianças com dispepsia funcional, mas a variabilidade é alta e ainda são necessários estudos maiores.
O futuro: nutrição personalizada e tecnologias emergentes
A integração de dados genéticos, metabolômicos e comportamentais pode permitir, no futuro, a personalização de estratégias nutricionais. Modelos baseados em inteligência artificial já mostraram resultados similares aos da dieta com baixo FODMAP em adultos, abrindo caminhos promissores também para a pediatria.
Conclusão
A nutrição deve ser considerada como uma parte essencial, mas não isolada, do manejo de desordens funcionais gastrointestinais em crianças. Intervenções dietéticas devem ser baseadas em evidência, implementadas com supervisão especializada e integradas a outras abordagens terapêuticas, como farmacoterapia e suporte psicológico.
Mensagens práticas
- A maioria das crianças com dor abdominal funcional associa alimentos aos sintomas; investigar essas percepções é essencial.
- A restrição alimentar sem orientação pode levar à desnutrição e transtornos alimentares;
- A dieta com baixo FODMAP deve ser usada com cautela e nunca sem supervisão nutricional;
- Fibras solúveis são uma intervenção promissora para SII, embora a evidência ainda seja de baixa certeza;
- A avaliação personalizada e o uso futuro de IA podem otimizar as abordagens nutricionais em distúrbios da interação intestino-cérebro.
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