Cada vez mais relevante na avaliação do paciente pediátrico, o diagnóstico de delirium também vem sendo explorado na neonatologia, porém ainda numa fase muito inicial. O presente texto faz uma síntese de dois relevantes artigos de revisão narrativa publicados recentemente: um deles no periódico Seminars in Fetal and Neonatal Medicine e o outro no Journal of Perinatology.
Epidemiologia
A prevalência de delirium em crianças é tão elevada quanto em adultos, tendo uma estimativa de 20% a mais de 65% em Unidades de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP). Na neonatologia, a prevalência foi estimada em cerca de 22%, conforme um estudo unicêntrico em uma Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN).
O delirium pediátrico (DP) está associado a muitos desfechos adversos, incluindo maior tempo de internação, maior tempo em ventilação mecânica (VM), aumento de extubações não planejadas, aumento de gastos hospitalares e aumento da mortalidade.
Fatores de risco
Os fatores de risco podem ser divididos em dois grupos: predisponentes e precipitantes. Os fatores predisponentes são inerentes ao paciente, não podem ser modificados e aumentam a sua vulnerabilidade ao delirium: idade inferior a dois anos, cirurgia ou procedimentos invasivos, presença de múltiplas comorbidades, gravidade das comorbidades subjacentes, desnutrição, cardiopatia congênita cianótica, atraso no desenvolvimento, VM e tempo de internação prolongados. Já os fatores precipitantes atuam como gatilhos e podem ser modificados: imobilização/contenção, sedação profunda, VM invasiva, síndrome de abstinência, exposição a medicamentos “deliriumgênicos” (benzodiazepínicos, opioides, corticoides e fármacos vasoativos), distúrbios eletrolíticos, infecção, inflamação sistêmica, hipóxia, exposição a ruídos, interrupção do sono e falta de luz natural.
A prematuridade ainda não foi identificada como um fator de risco para delirium. Entretanto, como o atraso no desenvolvimento cognitivo e a idade mais jovem (< 2 anos) são fatores de risco, a prematuridade também pode estar implicada.
Fisiopatologia
A fisiopatologia é complexa e ainda não é muito bem compreendida. Há múltiplas teorias propostas, incluindo desconexão da rede neuronal, desequilíbrio de neurotransmissores, desregulação do ritmo circadiano, estresse oxidativo, inflamação, entre outros. Todavia, nenhum mecanismo é isoladamente considerado o único ou principal mediador, pelo contrário. Acredita-se que vários mecanismos coexistem, em graus variados. Dessa forma, o delirium talvez seja mais bem conceituado como insuficiência cerebral aguda de etiologia multifatorial.
Quadro clínico
Há três subtipos motores: hiperativo, hipoativo e misto. Na pediatria, os subtipos não são claramente definidos, mas podem ser úteis para descrever a gama de potenciais manifestações clínicas. O delirium hiperativo se caracteriza pela presença de inquietude, agitação refratária, estado de hipervigilância e dificuldade de sedação. Já no subtipo hipoativo, ocorre letargia, apatia e um grau de sedação desproporcional ao regime medicamentoso instituído. Por fim, o delirium misto exibe manifestações clínicas dos subtipos hiperativo e hipoativo.
Diagnóstico
Na suspeita de delirium, o diagnóstico formal é feito utilizando os critérios que constam no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais quinta edição (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders fifth edition – DSM-5). Da forma como foram escritos, podem não ser facilmente interpretados para a avaliação de crianças pequenas. Portanto, deve haver foco em uma abordagem cuidadosa e focada no desenvolvimento. Em RN e lactentes, a consulta com um psiquiatra infantil é muito útil e pode ser realizada utilizando-se um método padronizado através do Vanderbilt Assessment of Delirium in Infants and Children (VADIC).
Dois instrumentos de triagem para delirium foram validados em coortes de idades mistas que incluem recém-nascidos (RN):
- Cornell Assessment of Pediatric Delirium (CAPD): instrumento rápido e observacional, sendo o mais frequentemente usado em UTIN. Possui oito itens e avalia: (1) contato visual, (2) ações intencionais, (3) consciência do ambiente, (4) comunicação, (5) inquietação, (6) inconsolabilidade, (7) nível de atividade em estados de vigília e (8) tempo/resposta às interações. Destaca-se a inclusão de pontos de ancoragem de desenvolvimento para auxiliar o examinador a concluir sua avaliação de forma adequada ao desenvolvimento para uma ampla faixa etária, incluindo neonatos, pois reconhece a dificuldade na avaliação de bebês e esses pontos servem de referência para uma avaliação considerada normal. Em geral, é aplicado por enfermeiro à beira-leito com base em suas observações do paciente ao longo de um plantão. Entretanto, ainda há necessidade de maior otimização para uso no RN;
- Preschool Confusional Assessment Method for the ICU (psCAM-ICU): é um instrumento interativo de diagnóstico à beira-leito para crianças de 0 a 5 anos. Foi validado em um cenário de idade mista de pacientes de 6 meses a 5 anos e também em uma coorte de 0 a 6 meses. Nele, são avaliados os principais domínios do delirium: estado mental, desatenção, nível de consciência e desorganização cerebral. A avaliação da desatenção é feita por meio de uma série de cartões de imagem e um espelho, dessa forma, não é validado para uso em crianças com deficiência visual ou auditiva. Por fim, deve haver cautela ao aplicar esta ferramenta em RN, pois seu desenvolvimento inicial não inclui lactentes mais novos, não especificou diferentes idades gestacionais e não foi validado em um ambiente específico de UTIN.
Prevenção e tratamento
- O primeiro passo é procurar por fatores de risco e abordá-los, avaliando e tratando conforme indicado. Por exemplo: alterações eletrolíticas, dor, hipóxia, infecção, inflamação;
- Otimizar a sedação e os agentes farmacológicos: minimizar a polifarmácia e as interações medicamentosas, evitar sedação profunda, estruturar o desmame de analgésicos e sedativos, uso criterioso de medicamentos que contribuem para o delirium;
- Ambiente: estimulação adequada ao desenvolvimento, evitar ruídos altos ou perturbadores, cuidados sensoriais de suporte, contato pele a pele, minimize as fontes de dor e estresse e a imobilização/contenção;
- Suporte para o ciclo sono-vigília: cluster care (agrupar cuidados que seriam realizados separadamente, em um único tempo), exames laboratoriais ou radiográficos de diagnóstico em grupo, minimizar interrupções de sono desnecessárias, otimizar a iluminação do hospital para exposição adequada à luz e à escuridão, promover cochilos adequados à idade;
- Avaliação multidisciplinar: envolvimento dos pais para o desenvolvimento, vínculo e cuidado do RN; envolvimento de enfermeiros; envolvimento da equipe multidisciplinar, incluindo terapeutas ocupacionais, psicólogos, fisioterapeutas respiratórios e outros; consulta com subespecialistas, incluindo psiquiatria infantil, conforme necessário; consulta com farmacêutico, conforme necessário;
- Avaliações seriadas: familiarize-se com o estado mental basal do paciente e repita as avaliações de delirium ao longo do tempo, reconhecendo sua natureza flutuante.
Desfechos clínicos
Os desfechos para RN que apresentaram delirium na UTIN ainda não são conhecidos. De fato, os neonatos podem ser vulneráveis aos efeitos adversos do delirium devido ao desenvolvimento e à maturação cerebral críticos no início da vida. Dessa forma, um bebê que esteja na UTIN está em um estágio de desenvolvimento altamente vulnerável. Portanto, a ocorrência de delirium deve ser considerada em relação aos riscos envolvidos no neurodesenvolvimento.
Comentário
O delirium é, na verdade, um problema que sempre existiu. A questão é que, antigamente, não se sabia da sua ocorrência em pediatria, especialmente em neonatos e lactentes jovens. Para que o delirium seja identificado, precisamos, conscientemente, procurá-lo. A gente só procura aquilo que conhecemos. Dessa forma, há uma necessidade urgente de disseminação do conhecimento que existe hoje acerca do delirium e incluir sua avaliação de forma rotineira em RN e crianças sob cuidados intensivos.
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