O câncer na população pediátrica apresenta expectativa de aumento de suas taxas nas próximas décadas. O cenário nos países em desenvolvimento é pior, com maior taxa de incidência e de mortalidade.
Existem disparidades importantes entre países de alta, média e baixa renda. Apesar do aumento da incidência global de câncer nas crianças e adolescentes, a redução na mortalidade ocorreu somente nos países de alta renda. Nos países de média e baixa renda, a mortalidade por câncer infantil continua significativamente maior.
Os desfechos do câncer infantil apresentaram melhora significativa nas últimas décadas devido a cooperação nacional e internacional dos grupos de estudo, a abordagem multidisciplinar e ao estabelecimento de centros de referência especializados em oncologia pediátrica.
No âmbito das medidas responsáveis pela melhora do prognóstico do câncer infantil, a criação dos “Multidisciplinary Tumor Boards (MTBs)” representa uma ferramenta essencial para facilitar a discussão interdisciplinar e aprimorar o gerenciamento dos casos.
Os MTBs consistem em reuniões estruturadas, com especialistas de múltiplas áreas, que discutem casos oncológicos para definir o melhor plano terapêutico individualizado. Nelas, um grupo de oncologistas e outros especialistas que atuam no tratamento do câncer pediátrico se reúnem regularmente, com o objetivo de discutir e revisar os casos novos e complexos, permitindo o estabelecimento de planos terapêuticos para cada um deles.
Os MTBs acontecem geralmente em centros de referência altamente especializados. A viabilidade e eficácia dos MTBs nos países de média e baixa renda ainda não está tão bem estabelecida, visto que nesses países ainda existem muitos desafios na assistência a saúde que envolvem a limitação de recursos e de acesso à cuidados e profissionais especializados, assim como a alta taxa de abandono de tratamento e a alta prevalência de comorbidades, como a desnutrição.
Sendo assim, embora os MTBs tenham demonstrado eficácia nos países de ata renda, sua aplicabilidade em países de média e baixa renda ainda é pouco explorada, merecendo especial atenção no nosso meio.
Apesar dos desafios para sua implementação, os MTBs representam uma perspectiva positivamente significativa para a melhoria dos resultados em oncologia pediátrica. A adaptação ao contexto local pode permitir e agilizar a comunicação entre os profissionais envolvidos no diagnóstico e tratamento dos pacientes, garantindo que as recomendações protocolares sejam seguidas corretamente, promovendo um processo compartilhado de tomada de decisão.
Assim, um estudo publicado em março 2025 teve como objetivo a avaliação do papel e a eficácia dos “Multidisciplinary Tumor Boards (MTBs)” na oncologia pediátrica em países de baixa e média renda, identificando barreiras, facilitadores, impacto clínico e estratégias para sua implementação sustentável.
Metodologia
Foi realizada uma revisão sistemática buscando identificar estudos relevantes acerca dos MTBs para oncologia pediátrica em países de média e baixa renda, seguindo as diretrizes PRISMA.
Foram utilizadas as seguintes fontes: PubMed, Google Scholar, SciELO (desde seu início até julho de 2024).
Os critérios de inclusão foram os estudos com pacientes pediátricos oncológicos, em países de média e baixa renda, avaliando os MTBs.
Os critérios de exclusão foram estudos em adultos, estudos realizados em países de alta renda ou estudos sem resultados reportados.
Apesar de não haver restrição de idioma, foram identificadas apenas publicações em língua inglesa.
A estratégia de busca foi refinada través da contribuição de um pesquisador experiente em oncologia pediátrica, melhorando a sensibilidade e garantindo a reprodutibilidade do estudo. Além disso, as bases de dados PROPERO e Cochrane foram revisadas com o objetivo de confirmar que nenhuma revisão sistemática sobreposta já havia sido publicada.
No total, foram selecionados 8 estudos, com avaliação de 1.083 casos pediátricos.
O presente estudo definiu como MTB, uma reunião oficial e formal com a presença de pelo menos dois ou mais médicos envolvidos no tratamento do câncer pediátrico, incluindo oncologistas pediátricos, cirurgiões pediátricos oncológicos e subespecialistas relacionados (radiologistas pediátricos, radioterapeutas, patologistas, psicólogos, assistentes sociais, médicos da dor, paliativistas e enfermeiros).
A seleção dos artigos foi realizada por dois revisores, de maneira independente. As divergências entre os revisores durante a triagem foram resolvidas através de um terceiro revisor.
A heterogeneidade dos delineamentos, assim como os tipos de intervenções e desfechos, limitou a síntese e a análise estatística quantitativa. Foi realizada uma análise qualitativa das metodologias dos estudos selecionados utilizando o Newcastle-ottawa (NOS) para estudos observacionais, adaptado para incluir delineamentos transversais e descritivos.
Resultados
Inicialmente, através das buscas nas bases de dados, foram identificados 2.699 estudos. Uma segunda análise por relevância selecionou 14 publicações, que foram avaliadas quanto à sua elegibilidade, excluindo mais seis estudos, restando apenas 8 dentro dos critérios de inclusão.
Em 20 países de média e baixa renda, estudos publicados entre 2017 e 2022 relataram que 1.083 casos foram avaliados e discutidos em MTBs.
Foram feitas 521 recomendações para o manejo dos pacientes, incluindo mudança de quimioterapia em 119 casos (23%) e recomendando mudança nas abordagens cirúrgicas em 142 casos (27%). No entanto, apenas 37% dessas recomendações foram seguidas.
A composição e a frequência dos MTBs variaram entre os estudos. Os principais participantes foram oncologistas pediátricos, cirurgiões pediátricos, radiologistas, patologistas e radioterapeutas. Enfermeiros e especialistas em medicina nuclear tiveram presença menos consistente.
A frequência dos MTBs foi variada nas diferentes instituições: semanal (30%), quinzenal (15%), mensal (25%), e inferior a uma vez por mês (30%).
Em relação à duração, apenas 4 estudos relataram o tempo de reunião, sendo três com sessões de 90 minutos e um com sessões de 60 minutos.
O formato virtual foi amplamente utilizado, principalmente nos casos em que havia colaboração internacional.
Os estudos evidenciaram o aprimoramento de vários aspectos relacionados ao tratamento e cuidado dos pacientes, tais como a melhoria da relação custo-efetividade, redução do tempo entre diagnóstico e tratamento, e garantia de equidade e consistência no atendimento.
Além disso, houve relato de que os MTBs promoveram aumento da qualificação de profissionais, com educação continuada dos residentes e capacitação para o gerenciamento de casos complexos em suas instituições de origem.
Houve ainda a melhora da expertise local, aumento dos encaminhamentos para centros de atendimento terciário, padronização do tratamento oncológico pediátrico e aprimoramento progressivo das condutas.
Um estudo demonstrou queda de 36% para 16% na necessidade de mudança terapêutica com o tempo, sugerindo aprimoramento.
A implementação dos MTBs apresentou diversos desafios e barreiras relacionados a fatores como falta de tempo protegido para reuniões (relatada em 3 estudos) e acesso instável à internet (especialmente para MTBs virtuais).
A ausência de infraestrutura, testes moleculares e serviços de radioterapia em muitos centros foram descritos como limitações que afetaram a capacidade das equipes seguirem as recomendações dos MTBs. No total, 54,2% das recomendações não foram aplicadas por limitação de recursos. Outros desafios incluíram infraestrutura limitada, barreiras geográficas e restrições de fornecedores.
Discussão
Essa revisão sistemática evidenciou uma ampla variação dos dados, refletindo a natureza diversa dos estudos. Apesar das diferenças encontradas entre os estudos, evidências corroboraram os benefícios dos MTBs na melhoria do tratamento do câncer infantil em países de média e baixa renda. Além disso, algumas conclusões puderam ser identificadas, tais como: as reuniões dos MTBs devem ser regulares, lideradas por um membro designado da equipe, tendo pelo menos um oncologista pediátrico, um cirurgião oncológico pediátrico, um radiologista e um patologista.
O envolvimento de uma equipe multidisciplinar no plano de tratamento de cada paciente aumenta significativamente a probabilidade de melhorias no diagnóstico e tratamento. O estabelecimento do MTB em uma instituição permite a documentação das condutas e do acompanhamento dos pacientes, consistindo em informações fundamentais para nortear e melhorar a tomada de decisão em casos futuros.
A colaboração interinstitucional dos MTBs promove ainda a identificação de deficiências sistêmicas, evidenciando a necessidade de mobilização de recursos e de soluções para desafios já enfrentados por outras instituições. O conhecimento coletivo permite e facilita a padronização das práticas.
Além disso, as colaborações internacionais dos MTBs trazem benefício para o treinamento médico, aumentando a capacidade de tratamento de todas as instituições participantes, fomentando ainda o desenvolvimento de unidades especializadas em oncologia pediátrica. Com isso, há possibilidade de investimento em infraestrutura e aporte de recursos que melhoram a qualidade geral da assistência no câncer infantil.
Uma vantagem que parece evidente para as instituições presentes em colaborações internacionais nos MTBs, está relacionada ao aconselhamento especializado global sobre as condutas clínicas e cirúrgicas de ponta, permitindo que os tratamentos sejam adaptados diante das limitações de recursos no caso dos países de média e baixa renda.
Os estudos mostraram ainda uma redução de quase 50% na necessidade de modificação do tratamento ao longo do tempo, indicando que menos ajustes foram necessários à medida que a expertise dos médicos foi aumentando. Esse achado evidencia o impacto duradouro dos MTBs na capacitação dos profissionais no gerenciamento de casos com maior precisão ao longo do tempo.
A padronização dos tratamentos permite ainda um refinamento dos protocolos através da coleta adequada de dados sobre os desfechos e monitoramento de toxicidades. Além disso, os MTBs internacionais onlines criam oportunidades de participação em ensaios clínicos, permitindo acesso dos pacientes a novas opções de tratamento.
A implementação dos MTBs nos países de média e baixa renda, apesar de fundamental, apresenta desafios relacionados a sobrecarga organizacional e aumento da carga de trabalho da equipe envolvida. O acesso insuficiente a internet assim como a falta de financiamento para realizar pesquisas clínicas pode limitar a capacidade de monitorar os resultados, identificar falhas do tratamento e implementar melhorias.
Além disso, alguns tratamentos recomendados pelos especialistas podem não estar disponíveis ou não serem possíveis de serem realizados em uma instituição com recursos limitados.
No âmbito tecnológico, a telemedicina se tornou uma ferramenta fundamental para a implementação bem-sucedida dos MTbs em países de média e baixa renda. O modelo de reunião virtual facilitou a participação de especialistas internacionais, com redução de custos e expansão de acesso a diagnósticos. Soma-se a isso o uso cada vez mais atual de inteligência artificial, permitindo a captura e transcrição e divulgação das informações.
Em comparação com países de alta renda, os MTBs são parte integrante do tratamento oncológico pediátrico, apoiados e estruturados de maneira robusta e especializada. Nos países de média e baixa renda faltam especialistas treinados (patologistas, radiologistas pediátricos) e estruturas de suporte adequadas.
Apesar disso, diversas práticas realizadas nos países de alta renda podem ser adaptadas para os países de média e baixa renda, buscando o aprimoramento dos MTBs.
As recomendações incluem reuniões mensais com equipe mínima (oncologista, cirurgião pediátrico, radiologista, patologista), uso de plataformas virtuais, documentação padronizada e registro de impacto clínico e inserção dos MTBs na formação médica e educação continuada.
No âmbito econômico, embora a análise de custo-efetividade direta seja limitada, é possível estabelecer que os MTBs evitam exames e condutas desnecessárias, otimizam o uso adequado de recursos e reduzem retrabalho por diagnósticos equivocados.
O que podemos levar para casa?
Essa é a primeira revisão sistemática que avalia a implementação e eficácia de MTBs pediátricos em países de média e baixa renda. Os centros oncológicos que utilizam MTBs parecem ter melhores desfechos clínicos, apesar das limitações em relação às evidências em países de média e baixa renda.
A heterogeneidade dos estudos presentes nessa revisão é um fator bem relevante, estando relacionada a como os MTBs foram estruturados, os recursos disponíveis para seu funcionamento, os desfechos clínicos medidos e registrados, além da frequência e composição das reuniões.
Sendo essa revisão sistemática de natureza descritiva, os fatores de confusão não puderam ser definidos. Além disso, a literatura disponível não contemplou todas as variáveis e características pretendidas previamente para a coleta, limitando a força de um estudo analítico completo e mais abrangente.
Os MTBs são ferramentas valiosas na oncologia cirúrgica pediátrica, mesmo em contextos em que há poucos recursos. Eles promovem melhores decisões terapêuticas, colaboram com a formação médica, ajudam na padronização dos cuidados e têm potencial para melhorar desfechos clínicos.
No entanto, para alcançar plena eficácia e sustentabilidade em países de média e baixa renda é necessário suporte institucional, políticas públicas específicas, formação contínua e uso estratégico de telemedicina e demais recursos tecnológicos.
Por isso, é fundamental o conhecimento e divulgação dessa estratégia, buscando a sua implementação e consequente benefícios para crianças e adolescentes com câncer que estejam sendo tratadas em qualquer instituição.
Como você avalia este conteúdo?
Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.