A Academia Americana de Pediatria (AAP) divulgou, recentemente, um relatório clínico sobre o reconhecimento e tratamento da dependência e síndrome de abstinência iatrogênica (SAI) por opioides em crianças. O relatório atualiza a declaração anterior da AAP de 2014, resumindo a literatura sobre SAI por opioides, refinando as estratégias de avaliação e orientando as práticas de desmame de opioides em pacientes pediátricos. No entanto, o parecer exclui a síndrome de abstinência neonatal causada pela exposição pré-natal. A seguir, encontram-se os pontos mais relevantes desta publicação.
Introdução
Medicamentos opioides são amplamente utilizados para analgesia e sedação em crianças após traumas, procedimentos cirúrgicos ou em Unidades de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN) e Pediátrica (UTIP), onde é frequente a exposição prolongada e a altas doses devido à dor contínua e à necessidade de tolerar dispositivos invasivos. Apesar de serem amplamente aceitos como cruciais no manejo desses pacientes, os opioides podem, infelizmente, induzir dependência fisiológica e desencadear sintomas de SAI por opioides após a descontinuação ou redução gradual, mesmo quando usados por períodos curtos de cinco dias. Em UTIP, o abandono progressivo dos benzodiazepínicos, que estão associados a delirium e outros desfechos adversos, aumentou a dependência de opioides juntamente com a dexmedetomidina como adjuvante, aumentando, dessa forma, o risco de abstinência. Além disso, opioides também são prescritos em ambientes ambulatoriais após cirurgias, lesões agudas ou procedimentos odontológicos, representando outra importante fonte de exposição nessa população.
Definições
A AAP destaca que é essencial sabermos distinguir os conceitos de abstinência fisiológica e tolerância, conforme definido pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais quinta edição (DSM-5), para avaliarmos as consequências do uso de opioides para sedação:
- Abstinência: refere-se à síndrome que surge quando os níveis sanguíneos ou teciduais de uma substância diminuem em um indivíduo com o uso prolongado e intenso;
- Tolerância: ocorre quando doses significativamente maiores são necessárias para atingir o efeito desejado ou quando a dose usual produz um efeito diminuído.
O relatório ressalta que é crucial não confundir dependência, ou transtorno por uso de opioides (TUD), com dependência fisiológica ou tolerância, uma vez que pacientes tratados adequadamente com terapia opioide de longo prazo podem desenvolver dependência e, às vezes, tolerância sem serem viciados. Embora a fisiologia subjacente à dependência iatrogênica e do TUD possa se sobrepor, os aspectos psicológicos e a abordagem clínica para esses grupos diferem substancialmente.
Escalas para diagnóstico
Segundo a AAP, a apresentação da SAI em crianças é altamente variável, abrangendo desde sintomas leves ou despercebidos até casos graves, potencialmente fatais. Embora a orientação inicial tenha sido amplamente baseada em dados de adultos com transtornos por uso de substâncias, o desenvolvimento e a validação de ferramentas específicas para pediatria, como a Sophia Observation Scale (SOS) e a Withdrawal Symptoms Scale, Version (WAT-1), geraram evidências direcionadas para apoiar a avaliação em crianças. O manejo de lactentes com SAI em UTIN e UTIP é semelhante ao de crianças mais velhas, e tanto a WAT-1 quanto a SOS são ferramentas diagnósticas validadas e amplamente utilizadas em ambas as populações.
Manifestações clínicas
A dependência de opioides em crianças geralmente permanece silenciosa até que o medicamento seja abruptamente reduzido ou suspenso, o que pode desencadear manifestações clínicas de SAI, particularmente durante transições entre formulações ou ao trocar de agente, pois as concentrações sanguíneas podem cair abaixo dos níveis esperados. As diferenças farmacogenômicas individuais afetam o metabolismo e a resposta do fármaco, tornando as doses padrão imprevisíveis e levando à analgesia inadequada ou sedação excessiva com sinais de SAI. Em pediatria, a SAI comumente se apresenta com manifestações neuropsiquiátricas, como agitação, ansiedade, insônia e tremores, juntamente com alterações fisiológicas, como náuseas, vômitos, hipertonia, diarreia, falta de apetite, taquicardia, taquipneia, febre, sudorese e hipertensão. Como esses sintomas podem se sobrepor a outras condições, como infecção ou sepse, a AAP salienta a relevância de uma interpretação cuidadosa dentro do contexto geral para garantir diagnóstico e tratamento adequados.
Estratégias de desmame
A SAI pode ocorrer após cinco dias de uso regular de opioides; portanto, ao prescrever para essa duração ou mais, o pediatra deve planejar uma redução gradual ao invés de uma interrupção abrupta, embora as evidências sobre a eficácia da redução gradual sejam limitadas. A avaliação de risco envolve determinar a probabilidade de SAI e avaliar as necessidades analgésicas contínuas, uma vez que pacientes em uso de doses altas ou terapia prolongada são mais vulneráveis.
Embora não exista uma diretriz universal, a AAP orienta que o desmame só deve começar quando os estímulos dolorosos forem controlados, reduzindo as doses em 10–20% a cada 24–48 horas, ajustadas à meia-vida do opioide e à resposta do paciente. Lactentes, crianças pequenas e pacientes com comprometimento cognitivo podem apresentar sintomas não reconhecidos e, embora seu papel ainda esteja em estudo, medicamentos adjuvantes (como a dexmedetomidina) ou doses de opioide de resgate (dose única, conforme a necessidade) podem ser considerados (por exemplo, quando WAT-1 ≥3).
Como muitos pacientes também dependem de benzodiazepínicos ou agonistas alfa-2, o desmame sequencial e não simultâneo é preferível. A redução gradual eficaz requer planejamento multidisciplinar, envolvimento familiar e estratégias de apoio, como intervenções comportamentais, fisioterapia e analgésicos não opioides, enquanto as armadilhas comuns incluem cronogramas excessivamente rápidos, falta de individualização e falha em reconhecer a abstinência ou as necessidades contínuas de dor.
Conclusão
A AAP reitera que o uso de opioides prescritos é prevalente tanto em ambientes pediátricos ambulatoriais quanto de internação. A interrupção abrupta pode levar a sintomas de SAI específicos do fármaco. Para pacientes pediátricos recebendo opioide por mais de 5 dias, o melhor é desenvolver um plano para desmamar a terapia, minimizando os sintomas de SAI. O plano deve incluir a estrutura de apoio do paciente, por exemplo, membro da família, médico prescritor, pediatra da atenção primária e outros membros da equipe de atendimento, como fisioterapeutas e psicólogos. O uso de uma estratégia de redução gradual deve ser empregado juntamente com uma escala validada, como SOS ou WAT-1 para avaliar os sintomas de SAI. Por fim, a AAP propõe, quando possível, o uso de adjuvantes não opióides para analgesia, para minimizar a exposição a opioides.
Autoria

Roberta Esteves Vieira de Castro
Graduada em Medicina pela Faculdade de Medicina de Valença ⦁ Residência médica em Pediatria pelo Hospital Federal Cardoso Fontes ⦁ Residência médica em Medicina Intensiva Pediátrica pelo Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro. Mestra em Saúde Materno-Infantil (UFF) ⦁ Doutora em Medicina (UERJ) ⦁ Aperfeiçoamento em neurointensivismo (IDOR) ⦁ Médica da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP) do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) da UERJ ⦁ Professora adjunta de pediatria do curso de Medicina da Fundação Técnico-Educacional Souza Marques ⦁ Membro da Rede Brasileira de Pesquisa em Pediatria do IDOR no Rio de Janeiro ⦁ Acompanhou as UTI Pediátrica e Cardíaca do Hospital for Sick Children (Sick Kids) em Toronto, Canadá, supervisionada pelo Dr. Peter Cox ⦁ Membro da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) ⦁ Membro do comitê de sedação, analgesia e delirium da AMIB e da Sociedade Latino-Americana de Cuidados Intensivos Pediátricos (SLACIP) ⦁ Membro da diretoria da American Delirium Society (ADS) ⦁ Coordenadora e cofundadora do Latin American Delirium Special Interest Group (LADIG) ⦁ Membro de apoio da Society for Pediatric Sedation (SPS) ⦁ Consultora de sono infantil e de amamentação ⦁ Instagram: @draroberta_pediatra
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