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Pediatria22 outubro 2023

AAP 2023: Abordagem da constipação funcional

O congresso trouxe uma revisão da epidemiologia, impacto social e prognóstico da constipação crônica e incontinência fecal.

A constipação é um quadro extremamente comum na pediatria, acometendo 25% das crianças, e que afeta consideravelmente a qualidade de vida, principalmente quando se pensa na constipação crônica. Apesar disso, o reconhecimento dessa condição pode não ser fácil. Dentre as causas de constipação, a mais comum é a constipação funcional, que corresponde a mais de 95% dos quadros.  

No segundo dia do AAP 2023, também tivemos a palestra do professor Anil Darbari, gastropediatra e professor de pediatria da George Washigton University School of Medical and Health Sciences, que trouxe uma revisão da epidemiologia, impacto social e prognóstico da constipação crônica e incontinência fecal, além de recomendações baseadas em evidências para a abordagem do quadro.  

O professor iniciou sua palestra relembrando que a constipação funcional é uma condição que deve ser diagnosticada e tratada. É comum que não se dê atenção a esse quadro, muitas vezes não se realizando as medidas farmacológicas indicadas, pois se espera que a criança irá resolver o quadro “sozinha”. O diagnóstico correto é fundamental para que se possa identificar esses quadros e tratá-los adequadamente. 

Diagnóstico da constipação: os critérios de Roma IV

Os critérios de Roma IV devem ser utilizados para a realização do diagnóstico da constipação funcional. Para isso, devemos ter uma criança com dois ou mais dos seguintes, por no mínimo um mês, ocorrendo pelo menos uma vez por semana, com critérios insuficientes para síndrome do intestino irritável:  

  • Dois ou menos episódios de defecação por semana no vaso sanitário, em uma criança com desenvolvimento compatível com quatro anos ou mais;  
  • Pelo menos um episódio de incontinência fecal por semana;  
  • História de postura retentiva ou retenção volitiva excessiva das fezes;  
  • História de evacuações difíceis ou dolorosas;  
  • Presença de grande massa fecal no reto;  
  • História de fezes de diâmetro aumentado que podem obstruir o vaso sanitário.  

Outras situações que podem estar presentes nos quadros de constipação funcional é a perda de fezes de forma espontânea, o que habitualmente se chama encoprese. Mas segundo o professor, esse não é um nome adequado, pois a encoprese é considerada um quadro psiquiátrico em que a criança brinca com suas fezes. O nome correto seria “soiling”, o que significa sujar.  

 A constipação funcional pode ser um processo que ocorre a partir da retenção fecal voluntária da criança. Vários motivos podem estar por trás disso: desde situações mais orgânicas, como defecação dolorosa, fissura anal, irritação perineal e hemorroidas, até outras situações de estresse, como abuso sexual, mudanças de ambiente, estresse familiar, distúrbios emocionais e mesmo o desfralde inadequado.  

Na maioria dos casos, o diagnóstico será baseado apenas nos critérios de Roma IV e não será necessário nenhum exame complementar adicional, além da história e do exame físico. O professor enfatizou a importância da realização de exame retal e perianal em crianças com constipação, uma vez que pode mudar completamente o encaminhamento do caso, dependendo dos achados físicos encontrados.  

Na história, sempre procurar indícios de constipação orgânica, como demora de passagem de mecônio no período neonatal, história de vômitos biliares ou de fezes com sangue, sintomas extraintestinais como febre ou perda de peso, e ausência de história de retenção voluntária de fezes. No exame físico, avaliar presença de distensão abdominal importante, fístulas perianais, dimple sacral, presença de pelos na região sacral, e presença de diarreias explosivas após exame retal. Esses indícios sugerem uma causa orgânica para a constipação, e nesses casos, exames complementares devem ser realizados.  

Em caso de necessidade de exames laboratoriais, o professor indicou a realização de triagem para doença celíaca com a medida sérica da IgA total e da transglutaminase tecidual – IgA, além da avaliação de eletrólitos, principalmente do magnésio, uma vez que não é incomum os pais oferecerem hidróxido de magnésio para tratamento da constipação. A avaliação rotineira da função tireoidiana seria desnecessária, uma vez que é extremamente raro que a criança com hipotireoidismo apresente apenas constipação, sem outros sinais mais precoces.  

Com relação aos exames radiológicos, eles não são necessários rotineiramente, mas uma radiografia de abdome pode ser importante nos casos em que os pacientes não colaboram adequadamente com o exame físico ou se há suspeita de alterações orgânicas. A ressonância magnética da região sacral auxilia nas situações em que há suspeita de lesões sacrais ou medulares. O professor contraindicou a realização de ultrassonografia de abdome para avaliação de situações funcionais, já que podem aparecer achados inespecíficos que confundirão o diagnóstico. 

Como tratar para a constipação típica

O tratamento inicial para a constipação típica é a educação. Os pais devem ser orientados que o quadro é comum, desmitificando a situação e não utilizando posicionamentos acusatórios, nem para os pais nem para a criança. Uma dica do especialista foi acessar o site www.gikids.com, que apresenta diversas dicas para a população leiga com relação aos cuidados necessários para crianças com distúrbios gastrointestinais, incluindo a constipação. Infelizmente, a página não apresenta as informações na língua portuguesa.  

Com relação ao tratamento específico para a constipação funcional o palestrante sugeriu três passos fundamentais para o manejo da constipação funcional:  

Passo 1

O primeiro passo consiste em realizar o esvaziamento completo do reto. Esse primeiro passo é realmente fundamental para o tratamento já que se não houver a realização do esvaziamento retal, o uso de medicamentos de manutenção pode piorar a perda fecal sem resolver o problema da constipação. Para a realização deste passo, a melhor medida é a realização de uma alta dose de polietilenoglicol (PEG) oral seguida de uma dieta de líquidos claros.  

Passo 2

Este passo consiste na terapia de manutenção.

  • Para crianças muito pequenas, o uso de medicamentos que tornem as fezes mais macias (geralmente os laxantes osmóticos) costuma ser suficiente;
  • Em crianças maiores que apresentam grande intensidade de retenção fecal, o uso de estimulantes para a evacuação costuma ser necessário, principalmente quando não há melhora do quadro com uso dos laxantes osmóticos;
  • O objetivo dessa fase é a realização de pelo menos uma evacuação diária em que as fezes sejam macias ou semi-formadas;
  • Não suspender as medicações até que a criança apresente melhora importante das evacuações e consiga realizar as mudanças comportamentais necessárias.  

Passo 3

O terceiro passo consiste nas mudanças comportamentais necessários para um bom treinamento de tolete. A criança deve se sentar de cinco a dez minutos no vaso sanitário, geralmente cerca de 15 a 20 minutos após uma grande refeição. Além disso, outros pontos são importantes:

  • Ingerir líquidos quentes ou tomar um banho quente antes do processo pode auxiliar.
  • Orientar aos pais que a criança deve estar com os pés apoiados, de forma confortável.
  • Caso a criança apresente medo do vaso sanitário, o uso de penicos pode ajudar. Evitar o uso de telas ou fones de ouvido. Por ser um mecanismo sensitivo, é importante que a criança esteja focada nas sensações relacionadas ao ato de evacuação.
  • Orientar mudanças dietéticas lembrando que as crianças devem comer pelo menos dois tipos de fibra por dia.  Isso pode ser feito estimulando o consumo de frutas, verduras e legumes diariamente. Cuidado, porém, ao indicar consumo excessivo de fibras, pois as evidências de que isso tem impacto na constipação são baixas.
  • Aumentar a ingestão de fluidos, estimular atividade física. As terapias de biofeedback podem colaborar bastante nesse momento, e podem ser realizadas com ajuda de fisioterapeutas ou terapeutas ocupacionais.

O uso de laxantes osmóticos como o PEG está associado às melhores evidências científicas para o uso no tratamento de manutenção. A lactulose não é uma boa opção, uma vez que as evidências são fracas e apresenta efeitos colaterais de distensão abdominal e gases. Da mesma forma, o uso de hidróxido de magnésio não é uma boa opção, com evidências fracas além da possibilidade de um grave efeito colateral, a hipermagnesemia.  

As opções de estimulantes para a evacuação são o Sene (um composto fitoterápico) e o bisacodil. É comum a presença de cólicas intestinais com o uso dessas medicações, e a família deve ser alertada para isso.  

Outras opções farmacológicas mais recentes, como os secretagogos Lubiprostona, Linaclotida e Plecanatida, ainda não apresentam evidências na população pediátrica, mas podem ser utilizadas. Dessas, apenas a linaclotida foi liberada para uso em crianças pelo FDA. O agonista 5 HT-4, prucaloprida, que estimula a atividade colônica, também ainda não é liberado para uso em crianças.

Mensagens para casa

  • A constipação crônica é um quadro comum que acomete 25% das crianças;
  • Em 95%, trata-se de constipação funcional;  
  • O diagnóstico é realizado com os critérios de Roma IV. Exames complementares geralmente são desnecessários, a menos que haja indícios na história e no exame físico que sugiram constipação orgânica;
  • O tratamento da constipação funcional é realizado com medidas de desimpactação, manutenção de medicamentos que melhorem o aspecto das fezes e estimulem a defecação, e mudanças comportamentais.

Confira todos os destaques do AAP 2023 aqui!

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