Imagine um tumor que cabe inteiro na palma da mão, mas cujo tratamento errado na primeira cirurgia pode custar todo o membro inferior ou mesmo a vida do paciente. É essa a realidade dos sarcomas de partes moles (SPM): raros (cerca de seis casos por 100 mil habitantes ao ano), extremamente heterogêneos (mais de 75 subtipos) e frequentemente silenciosos até atingirem tamanho considerável. Mesmo assim, metade deles ainda é operada sem biópsia prévia, em cirurgias “whoops”, termo que traduz bem o susto de descobrir só depois de operado que se tratava de um sarcoma.
O preço do erro inicial é alto: um estudo francês mostrou que pacientes discutidos em reuniões multidisciplinares antes de qualquer intervenção vivem mais, reforçando a máxima de que a primeira chance, bem planejada, é a que conta. Bons resultados exigem infraestrutura, como serviço de radiologia capaz de estadiar adequadamente e diferenciar lesões do tipo “não toque” de lesões potencialmente agressivas, patologista experiente para revisar lâminas e equipe cirúrgica habituada a ressecar tumores raros. Um ponto crítico é quando o laudo histológico inicial não é revisado por patologista especializado, até 35% dos diagnósticos apresentam erro, o que justifica a dupla leitura obrigatória em centros de referência. Não surpreende que diretrizes europeias recomendem encaminhar todo caso suspeito a centros de referência logo na suspeita clínica.
Desenho metodológico
O artigo de Neuberg e colegas é um guia de prática clínica elaborado por um grupo multidisciplinar do CHU Liège (cirurgia oncológica, oncologia, radioterapia, patologia e ortopedia). A equipe revisou diretrizes ESMO-EURACAN-GENTURIS 2021 e o Thésaurus National de Cancérologie Digestive 2022, sumarizou evidências de coortes populacionais, estudos das redes francesas NETSARC/RESOS e ensaios sobre margens cirúrgicas, além de integrar experiência institucional de mais de uma década no manejo de SPM.
População envolvida
Apesar de não se tratar de um estudo prospectivo, o artigo descreve o perfil clínico mais frequente desses pacientes. A idade costuma girar em torno de 60 anos, embora esses tumores possam ocorrer em qualquer faixa etária, e a incidência é praticamente igual entre homens e mulheres. Em termos de localização, metade dos casos aparece nos membros, cerca de 30% no retroperitônio ou abdome e o restante distribui-se pelo tronco, cabeça e pescoço. Os subtipos histológicos mais comuns são: lipossarcoma e leiomiossarcoma. Há fatores de risco bem estabelecidos, como as síndromes genéticas (LiFraumeni e neurofibromatose tipo 1), além de radioterapia prévia (até 5% dos sarcomas são radioinduzidos).
Resultados
Diagnóstico por imagem
- Lesões em membros ou parede abdominal devem ser avaliadas por ressonância magnética com gadolínio
- Massas intra-abdominais ou retroperitoneais podem ser avaliadas por tomografia computadorizada contrastada, na ausência de ressonância magnética.
- Para pesquisa de metástases a distância, a tomografia de tórax é indispensável, já que o pulmão costuma ser o primeiro sítio de disseminação metastática.
Biópsia coaxial guiada por imagem
Indicada para todas as massas profundas e para massas superficiais maiores que três a cinco centímetros. A técnica coaxial protege o trajeto e reduz o risco de semeadura tumoral, não aumenta recidiva local nem compromete sobrevida, como demonstrado em série de 2015. Ela deve ser planejada de modo que o trajeto feito para a biópsia seja retirado completamente com a cirurgia.
Reunião multidisciplinar
Pacientes discutidos antes do tratamento exibiram melhor sobrevida global em estudo com mais de mil casos, ressaltando a importância de planejar cirurgia, radioterapia, e se necessário, quimioterapia neoadjuvante.
Cirurgia em bloco
O padrão-ouro é a ressecção compartimental com margem tridimensional de tecido são (R0). Enucleações que seguem a pseudocápsula levam a margens microscópicas positivas (R1) e alto risco de recidiva. No retroperitônio, órgãos adjacentes podem ser ressecados em bloco. Dados nacionais franceses demonstram ganho de sobrevida quando a primeira cirurgia é feita em centro de referência.
Tratamento neoadjuvante
Quimioterapia fica reservada a subtipos sensíveis ou a tumores muito próximos de estruturas críticas quando se busca conversão para melhor ressecabilidade.
Impacto das imagens
Meta-análise de Gundle et al mostrou que margens negativas reais (pelo menos um milímetro de tecido saudável) reduzem recidiva local independentemente do grau histológico; margens intratumorais quadruplicam esse risco. Nenhum tratamento adjuvante compensa uma cirurgia inadequada.
Considerações clínicas e implicações para a prática
- Suspeite cedo: Nódulo profundo, indolor inicialmente e que pode ser tornar doloroso, e com crescimento progressivo, deve levantar a suspeita de que se trata de um sarcoma. Lesões em áreas previamente irradiadas exigem suspeita máxima.
- Imagem certa, lugar certo: Ressonância magnética com contraste é o melhor método para avaliar lesões de partes moles em membros e articulações.
- Biópsia protegida é sua melhor amiga: Planejar o trajeto que será incluído na ressecção definitiva evita semeadura e melhora o controle local.
- Centro de referência não é luxo, é necessidade: Pacientes operados em hospitais especializados têm menos recidiva e maior sobrevida. Encaminhar não significa perder o paciente, mas sim salvá-lo.
- Planeje em conjunto: Reunião multidisciplinar antes de qualquer incisão define sequência de tratamentos e evita improviso na sala cirúrgica.
- Cirurgia R0: O tumor deve sair embrulhado em tecido normal; se isso não for possível, é melhor programar tratamento neoadjuvante para melhor ressecabilidade.
- Pense além da lâmina: Casos associados a Li-Fraumeni ou NF-1 pedem vigilância genética. Encaminhe para médico geneticista.
- Eduque a equipe: Fisioterapeutas e enfermeiros precisam participar das reuniões multidisciplinares, uma vez que são essenciais no cuidado, como otimizar reabilitação e curativos
- Fale claro com o paciente: Explique que SPM é um tipo raro de câncer, no músculo ou na gordura, e que a qualidade da primeira cirurgia define o futuro: a maioria aceita viajar para um centro especializado quando entende a gravidade.
Sarcomas de partes moles são a melhor prova de que o sucesso em oncologia depende de reconhecimento precoce do problema, pedir ajuda na hora certa e operar com precisão milimétrica. O guia de Neuberg et al demonstra que seguir a cartilha de imagem adequada, biópsia coaxial, discussão multidisciplinar e cirurgia em bloco transforma um cenário de risco em história de sucesso. Para o residente e o cirurgião recém-formado, a lição é simples: suspeitou de sarcoma, pare, converse e encaminhe. A pressa em operar logo, sem planejamento, pode custar caro demais.
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