Na oncologia, particularmente entre pacientes idosos com câncer avançado, alinhar o tratamento aos valores de cada pessoa é tão decisivo quanto escolher a quimioterapia certa. Mesmo assim, conversas sobre limites terapêuticos, cuidados paliativos ou critérios para internação em UTI costumam ficar para depois, e esse depois às vezes chega quando o doente já não consegue mais expressar suas preferências. A ausência de planejamento antecipado (ACP) faz com que decisões críticas acabem baseadas em protocolos hospitalares, suposições da família ou até no plantonista que nunca viu o paciente. O estudo ACPP-EACE testou uma solução prática: vídeos educativos em 25 idiomas que explicam opções de cuidado combinados a um treinamento curto de meio dia em comunicação de más notícias para oncologistas. Avaliar se essa intervenção aumenta a documentação de ACP interessa a qualquer serviço que deseja oferecer cuidado realmente centrado no paciente, sem onerar a agenda já apertada do consultório.
Desenho metodológico
Trata-se de um ensaio clínico randomizado por conglomerado do tipo “stepped wedge”, metodologia particularmente eficaz nos estudos de implementação em saúde, pois permite a comparação intra e intergrupos ao longo do tempo, minimizando viés de alocação e maximizando a validade externa.
Vinte e nove clínicas ambulatoriais de três grandes sistemas de saúde nos EUA iniciaram no período controle (assistência usual) e migraram em blocos semestrais para o período de intervenção, permanecendo expostas até o fim do estudo. Toda pessoa com > 65 anos, diagnóstico de câncer avançado e pelo menos duas consultas prévias foi incluída automaticamente; não houve consentimento individual, minimizando viés de seleção e espelhando o cenário real. O desfecho primário foi a presença de qualquer documentação de ACP no prontuário eletrônico (conversa sobre objetivos de cuidado, limitação de suporte avançado, referências a cuidados paliativos ou hospice), identificada via processamento de linguagem natural validado. A análise obedeceu ao princípio de intenção de tratar e usou modelos lineares generalizados corrigidos para tempo e clustering.
A intervenção consistiu em dois componentes complementares:
A) Conteúdo audiovisual padronizado: vídeos com linguagem simplificada e culturalmente adaptada abordando cuidados paliativos, opções terapêuticas e tomada de decisão compartilhada traduzidos para 25 idiomas.
B) Treinamento em comunicação clínica para médicos: baseado na metodologia VitalTalk, com foco em habilidades práticas para conversas difíceis, prognóstico e definição de metas de cuidado.
Veja também: A importância dos cuidados paliativos em pacientes idosos com doenças crônicas
Características da coorte analisada
No período de abril de 2020 a novembro de 2022, 13800 pacientes únicos geraram 29357 observações (idade média de 74,5 anos; 52% homens). Cerca de 75% se autodeclararam brancos e 12% negros, 2,9% eram latinos. Houve ampla variedade de neoplasias: leucemia (13%), mieloma (14%), tumores gastrointestinais (14% ), geniturinários (12%) e pulmão (6%). A mortalidade durante o seguimento variou de 13% a 34% entre os três sistemas, reforçando a gravidade da coorte. A fidelidade da intervenção mostrou 84% dos profissionais treinados em comunicação e mais de 7 600 visualizações dos vídeos pelas famílias, embora a adoção do componente audiovisual tenha sido desigual entre os centros.
Resultados e análise interpretativa
O desfecho primário foi a proporção de pacientes com qualquer registro de planejamento antecipado documentado em prontuário. A intervenção resultou em um aumento estatisticamente significativo de 20,8% no grupo controle (não submetidos à intervenção) para 25,3% no grupo de intervenção (diferença ajustada de 6,8%, p< 0,001). Isso significa que a cada quinze pacientes expostos, um a mais teve suas preferências registradas: um NNT digno de terapias oncológicas de alto custo, mas aqui via educação e conversa.
O efeito da intervenção foi heterogêneo:
- Impacto mais expressivo foi observado em pacientes com tumores de pulmão, melanoma e ginecológicos (aumento superior a 10%);
- Menor magnitude de impacto em pacientes com mieloma, leucemia, sarcoma e linfoma;
- Influência institucional marcante: variação de até 18 pontos percentuais entre sistemas de saúde (um com aumento de 11,1% e outro com redução de 7,4%), sugerindo que a cultura organizacional e a infraestrutura local modulam a efetividade da intervenção.
Considerações clínicas e implicações para a prática
- ACP cabe no fluxo ambulatorial. Vídeos curtos que o paciente assiste na sala de espera aliados a oncologistas capacitados a conduzir um diálogo estruturado aumentam em quase 7 pontos percentuais a documentação de preferências. Em números absolutos, trata-se de centenas de pacientes por ano recebendo cuidado mais alinhado aos próprios valores.
- Treinamento rápido, impacto duradouro. Meio dia de capacitação no modelo VitalTalk mostrou ser suficiente para mudar comportamento de escrita no prontuário. É uma intervenção financeiramente modesta quando comparada aos custos de terapias de fim de vida mal direcionadas.
- Vídeo não substitui conversa, mas quebra o gelo. O filme prepara o terreno e o clínico agora mais treinado, colhe o fruto em forma de diálogo significativo.
- Atenção à implantação. A heterogeneidade entre sistemas revela que liderança local, suporte de TI e cultura da equipe impactam o sucesso.
- Aplicabilidade no Brasil. Em serviços oncológicos com grande rotatividade e tempo de consulta curto, usar vídeos em português e treinar residentes pode reduzir a tendência a decisões de última hora na emergência. Além disso, o desfecho escolhido (nota no prontuário) é facilmente auditável pelo gestor público ou suplementar.
Em resumo, o ACP-PEACE demonstra que uma intervenção pragmática (vídeos educativos mais treinamento conciso em comunicação) consegue ampliar de forma mensurável o planejamento antecipado de cuidados em idosos com câncer avançado. É a prova de que para oferecer medicina de alta qualidade não basta tecnologia, é preciso conversa estruturada, registrada e respeitada.
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