No câncer de orofaringe, a presença do HPV virou um divisor de águas. No geral, os tumores HPV-positivos respondem melhor ao tratamento e têm sobrevida maior do que os HPV-negativos. Na consulta, porém, surge sempre a dúvida: “e se o paciente que é HPV+ fumou por muitos anos, isso impactaria no melhor prognóstico?”. A hipótese de que o tabagismo poderia influenciar negativamente esse grupo de pacientes é antiga e está presente nas discussões de desintensificação de tratamento. O estudo analisado enfrenta esse ponto com duas frentes: primeiro, ele olha a genética e a expressão de genes nos tumores HPV+ e HPV-, separando fumantes e não fumantes; depois, valida as conclusões numa coorte tratada de forma uniforme com radioterapia (com ou sem cisplatina) dentro do ensaio DAHANCA 19. Ele tenta responder a pergunta se devemos mudar a conversa com o paciente e o plano terapêutico quando vemos “HPV+ e fumante” no prontuário.
Desenho metodológico
O trabalho tem duas etapas complementares. Na fase exploratória, os autores sequenciaram centenas de genes de tumores guardados em parafina para mapear mutações e alterações no número de cópias de genes. Em paralelo, avaliaram “assinaturas” de hipóxia, radiossensibilidade e alguns marcadores do microambiente imune (como PD-1/PD-L1). O status de HPV foi definido de forma robusta, combinando p16 por imunohistoquímica com detecção de DNA/RNA viral.
Na etapa de validação, os autores aplicaram um painel genético reduzido, focado no que apareceu de mais relevante na fase exploratória, em uma subcoorte do ensaio DAHANCA 19. Essa coorte tem um valor especial: todos receberam radioterapia moderna em dose e fracionamento padronizados; casos fossem localmente avançados fizeram cisplatina semanal; houve uso de nimorazole (radiossensibilizador hipóxico) conforme protocolo; e o seguimento mínimo foi de 5 anos. Desfechos avaliados: falha locorregional (recidiva no pescoço/orofaringe) e sobrevida global. A análise estatística seguiu o roteiro habitual: curvas de Kaplan–Meier, modelos de risco e ajustes para variáveis clínicas.
População envolvida
A fase exploratória incluiu 56 pacientes; a de validação, 162 (todos tratados no DAHANCA 19). A maioria dos tumores era de amígdala ou base da língua. Aproximadamente três em cada quatro eram HPV-positivos. Dentro do grupo HPV+, uma parcela importante tinha histórico de tabagismo (os autores usaram um ponto de corte de ≥10 maços-ano para classificar como “fumante”). Esse desenho permite duas comparações essenciais: HPV+ versus HPV- e, dentro do HPV+, fumantes versus não fumantes. O fato de a validação vir de um ensaio com tratamento homogêneo dá força às conclusões clínicas, eliminando parte da variabilidade de conduta que costuma confundir a interpretação.
Resultados
O gene TP53, marcador clássico de mau prognóstico em cabeça e pescoço, foi muito frequente nos HPV-negativos e raro nos HPV-positivos. Isso ajuda a explicar, do ponto de vista biológico, por que o grupo HPV+ costuma ir melhor. E, ponto importante: dentro do HPV+, o tabagismo não apareceu como desencadeador de mutações que pioram o prognóstico como a TP53. Outros alvos investigados (como MET) e assinaturas de hipóxia e de radiossensibilidade também não mostraram diferença consistente entre HPV+ fumantes e não fumantes. Na fase exploratória, alguns genes chamaram a atenção (por exemplo, NFE2L2 e CASP8) em análises iniciais, mas perderam significância quando se aplicou correção estatística mais rígida. Isso dá pistas para estudos futuros, mas nada que, hoje, justifique taxar o HPV+ e fumante como um subtipo molecular próprio e mais agressivo.
Agora vamos para o que realmente interessa: desfechos. Na coorte de validação, os números são claros. Em 5 anos, a falha locorregional foi de cerca de 11% nos HPV-positivos contra 43% nos HPV-negativos. A sobrevida global chegou a aproximadamente 88% nos HPV+ e ficou em torno de 41% nos HPV -. Ou seja, quando tratamos com radioterapia moderna (com ou sem cisplatina), o status de HPV determina o prognóstico.
E o papel do tabagismo dentro do HPV+? Ao analisar idade, sexo, estadiamento T e N, desempenho clínico e maços-ano, não houve piora estatisticamente robusta de sobrevida ou de controle locorregional associada à carga tabágica. Observou-se apenas tendência a resultados um pouco piores em ex-fumantes e fumantes atuais, que é coerente com o que vemos na população de tabagistas (pior cicatrização, mais toxicidade, maior risco de segundo tumor), mas sem a força de um marcador biológico independente que mude a classificação de risco.
Os autores tentaram também cruzar achados com dados públicos (TCGA), mas esbarraram na falta de informação de tabagismo em parte relevante dos casos, o que limita conclusões externas. Ainda assim, o padrão geral se mantém: em tumores de orofaringe, HPV é o determinante principal de prognóstico; o tabagismo não criou, neste conjunto, uma “assinatura genética do pior prognóstico” dentro do HPV+.
Considerações clínicas e implicações para a prática
1) Confirme o HPV de forma confiável e use essa informação para orientar a conversa sobre prognóstico com o paciente. Na suspeita clínica e patológica, faça p16 e, quando necessário, complemente com teste viral (DNA/RNA do HPV). Com HPV confirmado, você pode comunicar chance alta de controle local e sobrevida muito favorável com radioterapia moderna. É esse dado que sustenta, por exemplo, discussões de desintensificação, sempre dentro de estudos clínicos.
2) Não rebaixe automaticamente o HPV+ para pior prognóstico só porque o paciente fumou. O tabagismo merece abordagem firme por todas as razões (toxicidade, complicações, segundos tumores), mas não apareceu aqui como um agente que piora o prognóstico molecular do HPV+. Devemos reforçar a cessação do tabagismo, sim; porém não mudamos a expectativa de resposta e controle apenas por maços-ano quando o tumor é HPV+.
3) Padrão e qualidade do tratamento importam. Uma das grandes virtudes deste estudo é a uniformidade da radioterapia e dos esquemas de cisplatina na validação. Isso mostra que, quando o tratamento é bem feito, o “benefício” do HPV se traduz em números concretos. Para quem atua em serviços menores, vale o lembrete: planejamento de RT, controle de tempo de tratamento e suporte multiprofissional não são detalhes, são parte do resultado.
4) O que ainda precisamos saber. As pistas genéticas que apareceram na fase exploratória precisam de coortes maiores e de dados clínicos mais completos (especialmente sobre tabagismo) para confirmar se valem como biomarcadores. Até lá, a bússola continua simples e confiável: HPV é o marcador que mais pesa no câncer de orofaringe; parar de fumar melhora a jornada do paciente por muitos motivos, mas não reclassifica, por si só, o HPV+ em “alto risco” biológico.
Em resumo: nos tumores de orofaringe tratados com radioterapia moderna, HPV-positivo segue significando alto controle local e excelente sobrevida, e o tabagismo, embora clinicamente relevante, não mostrou, aqui, uma assinatura molecular própria que mude essa história.
Autoria

Gabriel Madeira Werberich
Possui graduação em Medicina pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2009). Residência de Clínica Médica pela UERJ/Hospital Universitário Pedro Ernesto(HUPE)/Policlínica Piquet Carneiro(PPC). Residência Medica em Oncologia Clínica pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA). Fellowship (R4) de Oncologia Clínica no Hospital Sírio Libanês (2016). Concluiu a residência médica de Radiologia e Diagnóstico por Imagem no HUCFF-UFRJ e R4 de Radiologia do Centro de Imagem do Copa Dor, com ênfase em Ressonância Magnética de Medicina Interna, e mestrado em Medicina na UFRJ concluído em 2023. Tem experiência na área de Clínica Médica, Oncologia Clínica e Diagnóstico por Imagem em Tórax, Medicina Interna e Radiologia Oncologica. Pos-Graduação em curso de Inteligencia Artificial aplicada a Saúde.
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