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Oncologia17 outubro 2025

Estatinas e apalutamida: efeitos no câncer de próstata avançado

Estudo mostra que o uso de estatinas sugere redução de mortalidade, mas dados devem ser interpretados com cautela.

No dia a dia do ambulatório, homens com câncer de próstata avançado chegam com duas histórias em paralelo: a oncológica e a cardiovascular. Bloqueio androgênico intensificado com inibidores do receptor androgênico (ARPI), como o apalutamida, melhora desfechos oncológicos, mas pode piorar o risco cardiometabólico; por outro lado, muitos desses pacientes já usam estatinas por prevenção primária ou secundária de eventos cardiovasculares. O ponto cego tem sido entender se, nesse contexto de terapia androgênica intensificada, o uso concomitante de estatinas se associa a melhor sobrevida global (OS) e a que custo em termos de eventos cardíacos. O estudo de Roy e colaboradores parte justamente dessa fronteira: pergunta se a exposição a estatinas durante o tratamento aleatorizado com apalutamida (ou placebo) nos grandes ensaios SPARTAN (nmCRPC) e TITAN (mCSPC) se associa a OS e a eventos cardíacos grau ≥3, oferecendo um retrato pragmático de uma combinação que vemos todos os dias no consultório. 

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estatinas no câncer de próstata

Desenho metodológico 

O desenho é um estudo de coorte pós-hoc, utilizando dados individuais de pacientes de dois ensaios de fase 3, multicêntricos e randomizados: SPARTAN (out/2013 a dez/2016; nmCRPC) e TITAN (dez/2015 a jul/2017; mCSPC). A análise final foi em 21/maio/2025. Em ambos os estudos, os pacientes receberam deprivação androgênica com apalutamida ou placebo; a exposição de interesse aqui foi uso de estatina durante o tratamento designado (podendo começar antes e terminar durante ou depois do regime aleatório). Os desfechos principais foram sobrevida global e eventos cardíacos grau ≥3. Para OS, os autores estimaram modelos de Cox multivariados com ponderação por probabilidade inversa de tratamento (IPTW); para eventos cardíacos, usaram o modelo de Fine-Gray considerando morte como evento competitivo, abordagem adequada para captar risco de eventos não fatais quando o óbito concorre na linha do tempo. 

No total, 2187 pacientes entraram na análise: 1288 tratados com apalutamida (517 no TITAN; 770 no SPARTAN) e 900 com placebo. A mediana de idade foi 65 anos no TITAN e 70 anos no SPARTAN. Como era de esperar em cenário de prevenção cardiovascular, usuários de estatina eram mais velhos e com maior IMC; curiosamente, a proporção com ECOG 1 foi relativamente menor. Esses desequilíbrios de base são justamente o motivo para o uso de IPTW na análise de OS. 

Do ponto de vista operacional, o ajuste de confusão incluiu variáveis clínicas chave (idade, IMC, ECOG, escore de Gleason, diabetes, dislipidemia, desordens vasculares, hipertensão, estágio tumoral e raça), e, no TITAN, ainda metástases viscerais, contagem de lesões ósseas, PSA basal e volume/risco de doença. Esse nível de granularidade dá mais credibilidade ao IPTW, ainda que não elimine o viés residual. 

É igualmente importante notar como os autores definiram exposição: focaram no “sim/não” para qualquer uso concomitante durante o tratamento aleatório, sem informação de dose, duração ou tipo específico de estatina. Essa decisão metodológica facilita a análise, mas impede avaliar relação dose-resposta e abre margem para viés de classificação da exposição (como diferentes potências e interações, sobretudo com apalutamida). 

População envolvida 

Falamos de uma população realista para oncologia genitourinária contemporânea: homens mais velhos (medianas de 65 e 70 anos) que, além da doença oncológica (nmCRPC ou mCSPC), carregam morbidade cardiovascular relevante. O recorte de base mostra que quem estava em estatina trazia mais fatores de risco clássicos (idade/IMC), e esse pano de fundo é essencial para interpretar tanto a associação com OS quanto o sinal de eventos cardíacos, afinal, maior comorbidade prévia pode tanto motivar a prescrição de estatina quanto elevar a chance de desfechos cardíacos durante a terapia oncológica. 

Um detalhe que pesa na generalização: alguns grupos raciais e étnicos minoritários tiveram representação extremamente baixa, o que limita extrapolar resultados para populações com diferentes perfis de risco e acesso à saúde. 

Resultados  

Sobrevida global (OS). Entre os pacientes tratados com apalutamida, a exposição a estatina associou-se a melhor OS: HR 0,53 (IC95% 0,32-0,87) no TITAN e HR 0,54 (0,39-0,74) no SPARTAN. Já entre os que usaram placebo, não houve associação consistente: HR 0,65 (0,38-1,13) no TITAN e HR 1,16 (0,76-1,77) no SPARTAN. Em termos de probabilidades ajustadas aos 3 anos, no TITAN com apalutamida, 81% (74-88) com estatina versus 67% (62-72) sem estatina; no SPARTAN com apalutamida, 86% (83-89) versus 78% (74-82) sem estatina. No placebo, os números foram 70% vs 58% (TITAN) e 75% vs 78% (SPARTAN), refletindo justamente a falta de consistência fora do cenário de intensificação androgênica. 

Esse benefício aparente do uso de estatina restrito a quem recebe bloqueio androgênico mais profundo é coerente com a hipótese biológica de que estatinas possam modular vias de crescimento tumoral dependentes de colesterol/andrógeno; mas o desenho observacional pós-hoc obriga cautela: correlação não é causalidade, e o próprio artigo reconhece que os achados são geradores de hipótese. 

Eventos cardíacos grau ≥3. A exposição a estatinas associou-se a maior risco de eventos cardíacos graves em ambos os braços, com HR 2,62 (1,35-5,08) no apalutamida e 2,36 (0,96-5,84) no placebo (este último com IC que cruza o 1). Os autores sugerem duas explicações não excludentes: (1) confusão residual por maior carga de comorbidade cardíaca nos usuários de estatinas (não capturada com a granularidade necessária), e/ou (2) viés de indicação (uso de estatina como medida de mitigação de risco cardiovascular frente ao uso da apalutamida). Em paralelo, estimativas cruas de causas de óbito mostraram menor proporção de mortes por progressão tumoral entre usuários de estatina, especialmente no apalutamida, sem redução paralela de mortes não oncológicas. quadro compatível com a melhora de OS vista no braço ativo. 

Limitações essenciais para interpretar no consultório: Os autores são transparentes em pontos cruciais: 

  • Exposição pouco granular:não havia início/fim, dose ou tipo de estatina; não se pôde estudar resposta dependente de dose ou diferenças entre moléculas (lipofílicas vs hidrofílicas, alta vs baixa potência). 
  • Interações medicamentosas:não foi possível avaliar interações entre apalutamida e estatinas, frequentemente relatadas e potencialmente relevantes para toxicidade. 
  • Comportamentos de saúde:estatina pode ser marcador de comportamento pró-saúde (adesão, seguimento regular), o que independentemente melhora desfechos oncológicos e gerais.
  • Concomitâncias não exploradas:muitos pacientes provavelmente usavam >1 classe de medicação concomitante; isso não foi detalhado.

Não por acaso, as conclusões são cuidadosas: o benefício de OS associado à estatina nos tratados com apalutamida é dado gerador de hipótese, que precisa de validação prospectiva; o maior risco de eventos cardíacos pode refletir comorbidade pré-existente e não necessariamente toxicidade causada pela estatina.

Considerações clínicas e implicações para a prática 

 1) Não prescreva estatina para tratar o câncer, mas não suspenda sem motivo. O estudo não randomizou estatina, não tem dose/tempo e é vulnerável a viés de indicação. O sinal de benefício de OS com apalutamida é interessante, mas não suficiente para iniciar estatina só por potencial ganho oncológico. Se houver indicação cardiovascular (e a maioria desses pacientes tem), mantenha; se não houver, não use estatina como “adjuvante oncológico” fora de ensaio clínico. 

2) Integre cardiooncologia desde o começo. Pacientes em apalutamida, com ou sem estatina, merecem estratificação de risco cardiovascular (pressão, glicemia, perfil lipídico, tabagismo, avaliação de sintomas). Diante do sinal de maior quantidade de eventos cardíacos entre usuários de estatina (provavelmente espelho da comorbidade), redobre vigilância de QTc, insuficiência cardíaca e isquemia em quem tem múltiplos fatores de risco, sem demonizar a estatina que, para muitos, é parte da proteção. 

3) Atenção às interações. Embora este trabalho não tenha explorado interações, a literatura lembra que apalutamida pode interagir com estatinas específicas. Se o paciente usa estatina de alta potência (p. ex., atorvastatina/rosuvastatina), verifique interações e ajuste quando necessário, preferencialmente em conjunto com cardiologista ou clínico geral 

4) Comunique os “poréns” com clareza. Explique que estudos como este sugerem (não provam) benefício de OS com estatina em quem recebe apalutamida. Isso evita abandono de estatinas por medo e desestimula início de estatina sem indicação cardiovascular válida. 

5) Traga o raciocínio para o cotidiano.  No paciente iniciando ADT + apalutamida, revise o perfil lipídico: se a estatina já é indicada, mantenha ou inicie; documente a conversa sobre benefício oncológico potencial, porém incerto.

Mensagem prática 

Nos homens com câncer de próstata avançado em uso de apalutamida, o uso concomitante de estatina aparece associado a melhor sobrevida global, mas com mais registros de eventos cardíacos graves, que pode ser um achado observacional, gerador de hipótese, que reforça o papel da cardio-oncologia e não autoriza prescrever estatina apenas por possível ganho oncológico fora de ensaio clínico. 

Autoria

Foto de Gabriel Madeira Werberich

Gabriel Madeira Werberich

Possui graduação em Medicina pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2009). Residência de Clínica Médica pela UERJ/Hospital Universitário Pedro Ernesto(HUPE)/Policlínica Piquet Carneiro(PPC). Residência Medica em Oncologia Clínica pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA). Fellowship (R4) de Oncologia Clínica no Hospital Sírio Libanês (2016). Concluiu a residência médica de Radiologia e Diagnóstico por Imagem no HUCFF-UFRJ e R4 de Radiologia do Centro de Imagem do Copa Dor, com ênfase em Ressonância Magnética de Medicina Interna, e mestrado em Medicina na UFRJ concluído em 2023. Tem experiência na área de Clínica Médica, Oncologia Clínica e Diagnóstico por Imagem em Tórax, Medicina Interna e Radiologia Oncologica. Pos-Graduação em curso de Inteligencia Artificial aplicada a Saúde.

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