A cada paciente que chega ao consultório após a biópsia com Gleason 7, surge a dúvida: “meu risco de morte é igual ao de todos os homens ou a cor da minha pele pode influenciar?”. A literatura mostra que homens negros têm maior incidência e mortalidade por câncer de próstata, ao passo que a maioria dos biomarcadores genômicos e modelos de risco foi criada em populações majoritariamente brancas. Se uma ferramenta baseada em inteligência artificial (IA) for treinada em um banco de imagens onde o homem negro tem pouca representabilidade, existe o risco de reforçar injustiças já presentes no sistema de saúde. O estudo de Roach et al responde justamente se um algoritmo multimodal, que combina lâminas digitalizadas de biópsia com dados clínicos, mantém desempenho semelhante em homens de origem africana e não africana incluídos em cinco ensaios fase III da NRG/RTOG. Em outras palavras, revisita o velho dilema “one size fits all” versus medicina de precisão sob a lente da equidade racial.
Método do Estudo
Os autores utilizaram material de 5708 pacientes provenientes dos estudos RTOG 9202, 9408, 9413, 9910 e 0126, todos tratados com radioterapia (RT) com ou sem bloqueio androgênico. O pipeline de IA. chamado Multimodal Artificial Intelligence (MMAI) foi treinado em 80% dos casos e validado nos 20% restantes. Duas versões do modelo foram avaliadas:
– DM-MMAI: otimizada para prever metástase à distância (DM)
– PCSM-MMAI: otimizada para prever morte por câncer de próstata na presença de metástase DDM
Ambos geram um escore contínuo de 0 a 1: quanto maior, maior o risco. O desempenho foi analisado em subgrupos raciais por modelos de Fine-Gray (risco subdistributivo) e Cox, usando incremento de 0,05 no escore como unidade de comparação. End points: tempo para DM (primário) e DDM (secundário); tempo para recidiva bioquímica e sobrevida global como exploratórios. Diferenças de distribuição de escore por raça foram testadas com Wilcoxon, curvas de incidência acumulada comparadas por Gray com ajuste de Bonferroni.
População envolvida
Entre os elegíveis, 948 (16,6%) eram afrodescendentes (AA) e 4731 (82,9%) não afrodescendentes; 29 foram excluídos por raça desconhecida. A idade mediana foi 69 anos em negros e 71 anos nos demais. Homens AA apresentavam PSA basal mais alto (mediana 13 ng/mL vs 10 ng/mL) e maior proporção de tumores Gleason 8-10 (17% vs 13%) e de risco alto/altíssimo pelo NCCN (42% vs 36%), o que reflete a realidade clínica de diagnóstico mais tardio nessa população. Importante notar que todos os participantes receberam RT em protocolos padronizados, reduzindo viés de tratamento.
Resultados
4.1. Distribuição dos escores
As curvas de densidade de escore nos dois subgrupos praticamente se sobrepuseram, indicando que o MMAI não confere risco mais alto apenas por raça. Diferença estatisticamente significativa só apareceu para o PCSM-MMAI no conjunto de desenvolvimento, mas se dissipou na coorte teste, sugerindo ausência de viés sistemático.
4.2. Poder prognóstico
– DM-MMAI: cada 0,05 ponto elevou o risco de metástase em 20% nos homens AA (sHR 1,2; IC 95% 1,0-1,3; p= ,0007) e 40% nos não AA (sHR 1,4; IC 1,3-1,5; p< 0,001)
– PCSM-MMAI: para morte com metástase, o incremento foi de 30% nos AA e 50% nos não AA
Traduzindo, a força de associação mantém a direção em ambos os grupos.
4.3. Estratificação em tercis
Quando o escore foi dividido em 3 faixas (baixo, intermediário, alto), o MMAI separou nitidamente as curvas de metástase e de morte específica em cada raça. No grupo AA, por exemplo, a taxa de DM em 5 anos saltou de 3% (baixo risco) para 20% (alto); nos não AA, de 1% para 23%. Diferenças entre raças dentro do mesmo nível de risco não atingiram significância após correção de múltiplas comparações.
4.4. Sobrevida global e recidiva bioquímica
Embora o end point principal não fosse sobrevida global, o MMAI também exibiu associação modesta, porém consistente com mortalidade global (HR aproximadamente 1,1% por incremento de 0,05) em ambas as raças. Para recidiva bioquímica o padrão foi semelhante, reforçando validade externa.
Mensagem prática
- Ferramenta pronta para uso equitativo – O MMAI mostrou desempenho robusto sem “puxar brasa” para um grupo específico. Na rotina, isso significa poder apresentar o laudo ao paciente negro com a mesma segurança de calibração que ao paciente branco
- Complemento ao estadiamento tradicional – O modelo agrega poder prognóstico além de PSA, Gleason e estadiamento T. Ao discutir tratamento multimodal, ter um escore contínuo ajuda a identificar quem é baixo risco de fato e talvez evitar intensificação desnecessária
- Como ler o resultado com o paciente – Um aumento de 0,05 no escore é como subir meio degrau numa escada de risco: se o homem AA passa de 0,35 para 0,45, o risco de metástase cresce 20%. Essa analogia de degraus facilita tradução à beira do leito ou no consultório.
- Aplicação em decisões de dose ou bloqueio hormonal – Nos estudos base, todos receberam RT, porém quem caiu no tercil alto atingiu incidência de DM acima de 30% aos dez anos. Na prática isso reforça a justificativa para intensificar bloqueio androgênico, considerar radiação de campo pélvico ou entrada em protocolo com terapias sistêmicas precoces.
- Limitações a lembrar
– A coorte foi tratada entre 1992-2004 e doses atuais de IMRT são mais altas. Contudo, como dose não altera sobrevida global de forma drástica, o viés é pequeno.
– O algoritmo não incluiu fatores sociais nem genômica tumoral avançada. Em breve, somar PET-PSMA ou assinaturas mutacionais deverá refinar ainda mais a curva.
– Embora quase mil homens negros componham a amostra, representatividade de hispânicos e asiáticos foi menor, devendo ter prudência ao extrapolar para essas populações.
- Mensagem para o consultório – Quando o paciente pergunta se a IA “enxerga” a cor da pele, a resposta baseada em dados do CASPIAN é: “Ela enxerga a lâmina e o PSA, não a sua cor de pele, e com isso consegue prever quem tem mais risco de metástase com a mesma precisão para todos”. Essa afirmação é respaldada por ensaios randomizados e quase 6 mil casos analisados.
- Próximos passos – Validar o MMAI em séries contemporâneas com radioterapia hipofracionada e incorporar dados de imagem molecular. Também é essencial monitorar continuamente a calibração nos diversos serviços para detectar cedo qualquer deriva algorítmica.
Conclusão
O estudo de Roach et al oferece evidência sólida de que um modelo de IA treinado em lâminas histológicas e variáveis clínicas pode ser aplicado de forma justa a homens afrodescendentes e não afrodescendentes com câncer de próstata localizado. A equidade e a precisão não são mutuamente excludentes. Ao adotar novas tecnologias, devemos exigir não apenas acurácias altas, mas também transparência de desempenho em subgrupos. Assim, aproximamos a promessa da medicina personalizada da realidade de todos os pacientes independentemente da cor da pele.
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