O tratamento do câncer de próstata metastático hormônio-sensível (mHSPC) mudou de paradigma na última década, ao sair da monoterapia com bloqueio androgênico para combinações que incluem docetaxel ou novos inibidores do receptor androgênico (ARIs). Mesmo assim muitos serviços ainda iniciam apenas a deprivação androgênica (ADT) e não indicam a intensificação de terapia inicial. Saber se vale a pena adicionar enzalutamida quando o PSA já caiu com a ADT é uma dúvida diária no ambulatório. O trabalho em pauta mergulha justamente nessa zona cinzenta, correlacionando a resposta bioquímica precoce (declínio ou indetectável) com sobrevida e qualidade de vida, fornecendo um termômetro objetivo para guiar decisões e evitar tanto subtratamento quanto toxicidade desnecessária.
Além disso, o PSA continua sendo o “exame de glicemia” do oncologista: barato, disponível e repetido a cada consulta. Entender o peso prognóstico de reduções absolutas (<0,2 ng/mL) ou relativas ajuda a transformar um simples número em estratégia terapêutica.
Método do estudo
Trata-se de análise pós-hoc do ARCHES, ensaio fase 3, duplo-cego, no qual 1150 homens com mHSPC foram randomizados 1:1 para enzalutamida 160 mg/dia + ADT ou placebo + ADT. O protocolo permitiu até 6 meses de ADT antes da randomização, espelhando a prática onde o paciente inicia a castração enquanto espera vaga no oncologista. O PSA foi coletado na triagem, semanas 1, 5 e 13 e depois a cada 12 semanas; imagem foi feita a cada 12 semanas. Os desfechos primários do estudo original eram sobrevida livre de progressão radiográfica (rPFS) e sobrevida global (OS). Nesta análise os autores estratificaram por PSA basal (<0,2; 0,2-4; 4 ng/mL), por PSA aos seis meses e por alcançar PSA<0,2 ng/mL em qualquer momento. Usaram Kaplan-Meier ,log-rank e regressão de Cox; aplicaram ajustes para crossover de 31% do braço placebo
População envolvida
- Total de pacientes: 1150 homens
- Mediana de idade: 70 anos (variando de 46 a 92 anos)
- Uso prévio de terapia de deprivação androgênica: mais de 90% dos pacientes
- Distribuição por PSA basal:
– ≤ 0,2 ng/mL: 135 pacientes
– 0,2 – 4 ng/mL: 372 pacientes
– 4 ng/mL: 542 pacientes
A maioria dos pacientes com PSA elevado tinha doença de alto volume e alto grau histológico, com metástases de novo, ou seja, já se apresentaram na consulta de primeira vez com doença metastática.
Resultados
Os resultados foram divididos em três grandes blocos:
- a) Benefício da enzalutamida por PSA basal
Mesmo entre os pacientes com PSA basal muito baixo (< 0,2 ng/mL) com uso de ADT, a adição da enzalutamida foi associado a redução do risco de progressão radiográfica (hazard ratio de 0,59). Já para os que tinham PSA entre 0,2 e 4 ng/mL, o hazard ratio foi 0,32 , e acima de 4 ng/mL foi de 0,44. Isso indica que o benefício da droga é consistente, mas mais pronunciado nos que tinham PSA intermediário ou elevado.
- b) Queda de PSA aos seis meses
Pacientes tratados com enzalutamida que atingiram PSA< 0,2 ng/mL após 6 meses apresentaram: 91% de redução do risco de progressão radiográfica (hazard ratio 0,09) e 82% de redução no risco de morte (hazard ratio de 0,18).
Em contrapartida, pacientes que não alcançaram essa queda de PSA têm prognóstico menos favorável. Isso sugere que a resposta ao PSA é um marcador de resposta precoce e deve guiar a estratégia de consultas de seguimento.
- c) Proporção de resposta
Dois terços dos pacientes em uso de enzalutamida tornaram-se indetectáveis (mediana 5,5 meses) contra apenas 18% no braço controle. Associou-se a redução de 86% em progressão radiográfica e 76% em mortalidade. Além disso, retardou a deterioração de qualidade de vida (HR 0,78), sinalizando que “PSA indetectável = paciente melhor”.
- d) Segurança
A toxicidade foi previsível: fadiga, hipertensão e eventos musculoesqueléticos. Curiosamente, quanto mais profundo o declínio do PSA, menores as taxas de dor óssea e fadiga, possivelmente reflexo do melhor controle tumoral. Hipertensão foi levemente maior nos respondedores profundos, indicando manter aferição regular e ajuste dos anti-hipertensivos do dia a dia.
Mensagem prática
- Intensifique cedo mesmo com PSA baixo: Se o paciente já mostrou resposta bioquímica exuberante à castração, não pense que já está bom: a enzalutamida adiciona camadas de proteção invisíveis, prolongando rPFS e OS.
- Meta do consultório: PSA indetectável. Explique ao paciente que atingir valor indetectável não é mera vaidade laboratorial, pois a curva de sobrevida se alonga e a chance de dor óssea cai.
- Gerencie eventos de forma proativa. Hipertensão aparece precocemente, monitore ativamente. Fadiga melhora com atividade física adaptada. Dor músculoesquelética costuma responder a suplementação de vitamina D e fisioterapia. Assim, evitamos a tentação de reduzir dose e comprometer eficácia.
- Planejamento de saúde pública. O fato de o benefício se manter independentemente do PSA basal apoia diretrizes que recomendam enzalutamida + ADT como padrão para todos os mHSPC, simplificando protocolos e evitando discussões de reembolso baseadas apenas em números de PSA.
Concluindo, esta análise do ARCHES consolida a enzalutamida como peça chave na linha de frente do mHSPC. Ao transformar o PSA, exame que cabe no bolso do SUS, em biomarcador de decisão refinada, oferece caminho claro: intensificar o tratamento cedo, mirar PSA indetectável e reavaliar em 6 meses. Com isso, ganhamos não só meses de vida, mas também tempo de qualidade, algo que nenhum gráfico de Kaplan-Meier consegue mensurar por completo.
Veja também: Enzalutamida é aprovada para pacientes com câncer de próstata sensível à castração metastático no Brasil
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