No ambulatório de hematologia é comum ver pacientes exaustos por ciclos sucessivos de quimioterapia, que fadigam tanto o corpo quanto a mente. Dor, náusea, fadiga e insônia andam juntos, minimizando a adesão ao tratamento e aumentando demanda por medicações. Estratégias farmacológicas nem sempre bastam e muitas vezes, o que o doente precisa é de algo simples, barato e livre de efeitos colaterais, que devolva ânimo e sono reparador. A ioga do riso é uma combinação de exercícios respiratórios, alongamentos suaves e gargalhadas intencionais, e tem sido estudada como intervenção complementar exatamente para aliviar esses sintomas. Contudo, até agora faltavam ensaios randomizados focados em cânceres hematológicos, em que as internações longas e o risco de infecção limitam intervenções em grupo.
O artigo de Özlem Ugur e colegas preenche essa lacuna ao testar se quatro sessões de ioga do riso poderiam reduzir sintomas induzidos pela quimioterapia e melhorar a qualidade do sono, em pacientes com leucemia, linfoma ou mieloma múltiplo, internados numa enfermaria universitária na Turquia.
Metodologia
Trata-se de um ensaio clínico randomizado, controlado, paralelo, conduzido entre novembro 2020 e dezembro 2021. O cálculo amostral via G*Power definiu 60 participantes para 80% de poder; eles foram alocados 1:1, estratificados por sexo e tipo de câncer usando minimização pelo site Randomizer.org. A randomização foi aberta aos pacientes, mas os avaliadores estatísticos eram cegos.
Intervenção: quatro sessões de ioga do riso, de 45 minutos, duas vezes por semana, ao longo de duas semanas, lideradas por profissional certificado. Cada sessão seguia protocolo padronizado: respiração diafragmática, palmas rítmicas, gargalhadas simuladas que evoluem para riso espontâneo, movimentos lúdicos e relaxamento guiado.
Controle: cuidados habituais da unidade, sem qualquer atividade adicional. Para minimizar contaminação, os pacientes ficavam em quartos individuais e não tinham contato entre grupos.
Desfechos: Mudança nos escores de sintomas (Edmonton Symptom Assessment System- ESAS), na qualidade do sono (Pittsburgh Sleep Quality Index – PSQI), percepção de sono via escala visual analógica (VAS-Sleep) e satisfação com a intervenção (VAS 0-10).
Quatro pontos de aferição foram definidos: dia 1 e dia 5 (primeira semana), dia 8 e dia 12 (segunda semana). A análise empregou testes t pareado ou Mann-Whitney, Friedman para medidas repetidas e pós-hoc de Bonferroni quando apropriado; significância em p< 0,05
População envolvida
Dos 60 pacientes, 30 receberam ioga do riso e 30 permaneceram no controle. As características de base foram bem balanceadas: idade entre 19 e 78 anos (média ao redor dos 55), distribuição semelhante de sexo, estado civil, escolaridade e renda. Leucemias agudas, linfomas e mieloma múltiplo compuseram a maioria dos diagnósticos. Todos estavam em quimioterapia com risco emetogênico moderado ou alto, o ECOG médio foi 0,7 em ambos os grupos, indicando pacientes ainda ativos. Comorbidades como hipertensão e diabetes apareciam em proporções similares, nenhum participante usava hipnóticos de rotina, o que evita viés nos dados de sono.
Resultados
Sintomas (ESAS)
Logo após as duas primeiras sessões, a dor caiu de média 1,6 para 0,5 no grupo intervenção contra redução discreta no controle. Essa melhora manteve-se no dia 12. Náusea seguiu padrão parecido: queda de 3,3 para 0,2 em duas semanas enquanto o controle recuou apenas de 4,2 para 1,7. Houve ainda diminuição significativa de ansiedade, fadiga e perda de apetite dentro do grupo intervenção, com curvas estáveis ou flutuantes no controle. Curiosamente, sintomas menos frequentes, como falta de ar, alterações de pele,unhas e parestesia em mãos, também declinaram no grupo intervenção, sugerindo efeito sistêmico do riso na percepção global de bem-estar.
Qualidade do sono (PSQI)
O componente “qualidade subjetiva do sono” melhorou já na primeira semana e manteve-se superior ao controle na avaliação final. Os parâmetros “duração do sono” e “distúrbios do sono” também tiveram queda significativa de pontuação, refletindo noites mais longas e menos fragmentadas. O escore total médio do PSQI passou de 8,1 para 5,8, cruzando o limiar de 5 que separa sono ruim de adequado; o controle permaneceu em 8,4.
VAS-Sleep
A escala de 0 a 10 mostrou aumento gradual de satisfação com o próprio sono, partindo de 4,4 no dia 1 para 6,9 no dia 12 entre os praticantes, enquanto o controle ficou estacionário
Satisfação com a intervenção
Os participantes atribuíram média 7,2 (variação 5-10) para satisfação geral com a ioga do riso, descrevendo sensação de “leveza”, “energia” e “esquecer que está em tratamento”. Nenhum evento adverso foi reportado.
Força dos achados
O desenho randomizado e a homogeneidade inicial reforçam validade interna. A adesão de 100% às quatro sessões e às avaliações confirma viabilidade mesmo em contexto de internação. O curto follow-up, porém, impede saber se o benefício persiste após a alta, e o tamanho amostral reduz chance de detectar mudanças em sintomas raros. Ainda assim, a magnitude de efeito na dor (redução de 70%) e náusea é clinicamente relevante.
Considerações clínicas e implicações para a prática
- Pílula de baixo custo: quatro sessões de 45 minutos, conduzidas por profissional treinado, já foram suficientes para reduzir dor e náusea a níveis quase desprezíveis, e transformar insônia crônica em sono aceitável. Em termos de logística, basta uma sala arejada, cadeiras afastadas e vontade de rir: um investimento irrisório frente ao preço de antieméticos ou hipnótico.
- Segurança e adesão: nenhum evento adverso, abandono zero e notas altas de satisfação mostram que a técnica é bem acolhida. Isso abre porta para implementá-la em enfermarias, salas de quimioterapia ambulatorial ou até via vídeo para quem permanece em isolamento.
- Integração multiprofissional: a equipe de enfermagem pode conduzir as sessões após breve capacitação. Psicólogos e fisioterapeutas também podem incorporar exercícios de riso em rotinas de reabilitação ou grupos de suporte.
- Limites e próximos passos: são necessários ensaios com amostras maiores, seguimento de longo prazo e comparação com outras intervenções (meditação, musicoterapia etc). Ainda assim a evidência atual já justifica oferecer a ioga do riso como opção complementar em protocolos de cuidado de suporte clínico.
- Mensagem ao paciente: “Não vamos trocar o remédio pelo riso, mas podemos usar o riso para que o remédio incomode menos e a noite renda mais descanso”. Essa frase resume o espírito da intervenção, que é um adjuvante simples que devolve senso de controle ao doente e favorece adesão ao tratamento.
Em síntese, o estudo mostra que dar boas gargalhadas pode ser tão terapêutico quanto uma medicação de suporte bem escolhida. Incorporar a ioga do riso no arsenal de cuidados é passo coerente com a busca por tratamentos humanizados custo-efetivos e centrados no paciente.
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