O carcinoma de endométrio é um dos cânceres femininos mais incidentes e com tendência de crescimento, impulsionado pelo envelhecimento populacional e pela obesidade. Em 2020, estimaram-se 417 mil casos novos e 97 mil mortes no mundo; só na Europa, foram 124.874 casos e 30.272 óbitos em 2022, com variação importante de prevalência entre os países. Além disso, a Europa já contava, em 2020, com cerca de 123 mil sobreviventes nos dois anos mais recentes, 159 mil entre dois e cinco anos, e 650 mil com mais de 5 anos após o diagnóstico, formando uma população heterogênea, com grande proporção de pacientes ≥75 anos, em que comorbidades e síndrome metabólica pesam no desfecho global. Importante lembrar que a idade por si só é fator prognóstico; quanto mais avançada, maior a chance de tumores agressivos e piores resultados oncológicos.
Nesse cenário, reduzir variação de condutas e transformar biologia tumoral em decisões clínicas reprodutíveis é decisivo. A atualização ESGO-ESTRO-ESP 2025 faz exatamente isso: incorpora o estadiamento FIGO 2023, que trouxe a biologia para dentro do estadiamento, e expande recomendações para diagnóstico, tratamento, seguimento e educação da paciente. É um convite para falar a mesma língua em tumor board, patologia, cirurgia, radiologia e oncologia clínica, com foco em desfechos e qualidade de vida.
Desenho metodológico
As diretrizes são um Policy Review (revisão de políticas) baseada em evidências, publicado no Lancet Oncology, resultante do trabalho integrado de ESGO, ESTRO e ESP. O desenvolvimento seguiu etapas explícitas: busca sistemática, avaliação crítica e redação por um grupo internacional multidisciplinar de 30 especialistas (ginecologia oncológica, radio-oncologia, oncologia clínica e patologia), com representante de pacientes no núcleo de elaboração. Cada recomendação foi mantida quando sustentada por evidência suficiente e consenso ≥75% entre os especialistas.
Houve ainda uma avaliação externa robusta: 225 revisores internacionais (Ásia, Europa, Norte da África, América do Norte, Oriente Médio e América do Sul) e três representantes de pacientes avaliaram relevância e viabilidade, com coleta e discussão formal dos pareceres antes da versão final. O sistema de graduação da evidência e da força das recomendações é uma adaptação do IDSA–US PHS, com níveis I-V e graus A-E (de “fortemente recomendado” até “nunca recomendado”).
O escopo cobre diagnóstico, tratamento, seguimento e educação da paciente e explicita o público-alvo: ginecologistas oncologistas, cirurgiões, radio-oncologistas, patologistas, oncologistas, radiologistas, equipes de atenção primária e cuidados paliativos. Tratamento que preserva a fertilidade foi excluído por ter guideline próprio (ESGO/ESHRE/ESGE 2023), e não há análise econômica nesta atualização. Portanto, temos uma métodologia transparente, multidisciplinar, com validação externa ampla e linguagem padronizada (inclusive definindo o uso de “MMRd” e “não-MMRd” ao longo do texto)
População envolvida
As recomendações se aplicam a todas as pacientes com carcinoma de endométrio, do diagnóstico à recidiva. O documento também define que o planejamento do estadiamento e o tratamento ocorra em reuniões multidisciplinares (tumor board), com aconselhamento claro de riscos e benefícios e preferencialmente em centros especializados, ainda mais ns doença de alto risco e estadiamento avançado.
Uma população de particular interesse são as portadoras (ou suspeitas) de síndrome de Lynch. As diretrizes recomendam triagem universal por imuno-histoquímica (IHC) para proteínas de reparo de DNA (MMR), com análise de metilação de MLH1 quando houver perda de MLH1 isolada (ou MLH1+PMS2), Pacientes com risco aumentado devem ser encaminhadas à genética, com testagem e vigilância de tumores relacionados.
Resultados
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Princípios gerais que mudam a rotina
Três mensagens simples que organizam o fluxo assistencial:
- Decidir em tumor board, com base em fatores prognósticos/preditivos, morbidade e qualidade de vida;
- Aconselhar bem a paciente sobre alternativas, riscos e benefícios;
- Tratar em centro especializado preferencialmente. Isso evita decisões fragmentadas (p.ex., indicar cirurgia sem discutir adjuvância à luz da biologia tumoral),
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Identificação e vigilância na síndrome de Lynch
O guideline oficializa a IHC universal para MMR como método inicial (com metilação de MLH1 quando cabe) e considera testagem de MSI como segunda opção. Com IHC/MSI alteradas ou história familiar sugestiva, a paciente deve ir à consulta com geneticista, com aconselhamento, testagem germinativa e plano de vigilância.
A vigilância do endométrio em portadoras da síndrome costuma iniciar aos 30 anos, ajustada pelo gene e história familiar, incluindo USG transvaginal anual e biópsia endometrial anual ou bienal até a histerectomia. Para redução de risco, recomenda-se histerectomia + salpingo-ooforectomia bilateral após prole definida, preferencialmente antes dos 40 anos nas mutações MLH1/MSH2/MSH6, e na menopausa nas mutações PMS2. O texto também orienta discutir vantagens e desvantagens da cirurgia profilática (inclusive risco de achado de câncer oculto) e sugere terapia estrogênica de reposição após salpingooforectomia bilateral na pré-menopausa.
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Classificação molecular universal
O guideline institui a classificação molecular para todos os carcinomas endometriais (POLE-ut, MMRd, NSMP e p53abn) a partir de três análises básicas: teste de POLE, IHC para MMR e IHC para p53. Alguns pontos operacionais úteis ao dia a dia do consultório:
- Quando omitir: em estádio I de baixo risco em que o status POLE não mudaria a adjuvância, o teste pode ser omitido.
- Onde testar: priorize a biópsia/curetagem; repita na peça apenas se houver tecido escasso, resultados equívocos/problemas técnicos, ou novo componente tumoral na histerectomia
- Como testar:
– MMR: IHC é padrão. A abordagem com dois anticorpos é equivalente à de quatro; resultados heterogêneos/equívocos pedem PCR de MSI.
– P53: faça por IHC; se o padrão for equívoco/heterogêneo, use sequenciamento de TP53 como alternativa.
– POLE: garanta que o painel cubra as 11 variantes patogênicas.
- Múltiplas alterações genéticas: siga a regra do “driver genômico”: POLEmut prevalece sobre p53abn e MMRd; MMRd prevalece sobre p53abn.
- ER(receptor de estrogenio) e HER2: dose ER por IHC em todas, pois ele facilita diagnóstico, é prognóstico em NSMP e prediz resposta a terapia endócrina na doença avançada/recorrente. Em p53abn avançado/recorrente, serosos e carcinossarcomas, avalie HER2 por IHC e, se escore ≥2, complemente com FISH padronizado.
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Grupos de risco: casamento FIGO 2023 + biologia
As diretrizes alinham a definição de risco prognóstico com a FIGO 2023, integrando extensão tumoral, status de invasão linfovascular (LVSI) e classificação molecular. Os algoritmos de risco mostram a alocação com FIGO 2023 e biologia. Quando a classificação molecular é conhecida, surgem categorias específicas, como “I Am POLEmut” (estádio I com POLE mutado). O algoritmo também expande o grupo NSMP em dois subconjuntos com implicações práticas: NSMP de baixo grau/ER-positivo versus NSMP de alto grau ou ER-negativo, refletindo diferenças prognósticas e possíveis escolhas de adjuvância.
Para o residente e oncologista recém-fornado: pense no risco como uma “soma ponderada” de anatomia (FIGO) + biologia (molecular e LVSI). Isso evita overtreatment em tumores POLEmut muito favoráveis e undertreatment nos p53abn com cara “inocente” à primeira vista.
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O que isso muda nas decisões terapêuticas?
O documento não é um protocolo de quimioterapia; é um mapa que ancora as escolhas adjuvantes e de manejo da doença avançada/recorrente em biologia. Na prática:
- POLEmut tende a permitir desintensificação adjuvante;
- p53abn frequentemente puxa para intensificar;
- MMRd exige desconfiar de Lynch e pode orientar estratégias na recidiva;
- NSMP alto grau ou ER-negativo demanda cautela adicional.
Além disso, a padronização de ER (prognóstico/preditivo) e HER2 (seleção adicional em p53abn/seroso/carcinossarcoma) aproxima o laudo de decisões personalizadas, e o texto encoraja explicitamente ensaios clínicos guiados por biomarcadores, reforçando a direção da medicina de precisão na doença avançada/recorrente.
Conclusão e mensagem prática
Tríade molecular já na primeira amostra: ao confirmar o diagnóstico, peça juntos: p53 (IHC), MMR (IHC, com MLH1 metilação quando couber; complemente com MSI se IHC equívoca/heterogênea) e POLE (omitível no estádio I de baixo risco quando não muda a adjuvância). Se o p53 vier indeterminado, sequencie TP53; e garanta que o painel de POLE cubra as 11 variantes patogênicas do domínio exonuclease. Isso define risco, alinha a discussão em tumor board e reduz retrabalho (evita “voltar ao bloco de parafina” para completar laudo com nova análise).
Ajuste a linguagem do laudo e do prontuário: peça para o serviço de patologia reportar ER (prognóstico no NSMP e preditivo para terapia endócrina na doença avançada/recorrente) e testar HER2 nos p53abn avançados/recorrentes, serosos e carcinossarcomas (IHC, com ISH se escore = 2). Ao estratificar risco, use a FIGO 2023 integrada à biologia tumoral, reconhecendo categorias como IAm POLEmut, e diferencie NSMP em baixo grau/ER+ versus alto grau/ER- .
Não perca a janela de testar Lynch: implemente IHC universal de MMR como triagem, com metilação de MLH1 quando indicado; testagem de MSI é plano B somente se IHQ inconclusiva. Diante de risco elevado (IHC/MSI/história), encaminhe precoce à consulta de genética. Estabeleça vigilância do endométrio a partir dos 30 anos (ajustada por gene e família), com USG transvaginal anual e biópsia anual/bienal até histerectomia; discuta cirurgia redutora de risco (histerectomia+BSO) antes dos 40 para MLH1/MSH2/MSH6 e na menopausa para PMS2; sugira reposição hormonal após BSO na mulher na pré-menopausa.
Traga o tumor board para o centro da linha de cuidado: formalize reuniões semanais com checklist (FIGO 2023, LVSI, POLE/MMR/p53, ER, HER2, plano adjuvante, necessidade de RT/QT, adequação cirúrgica). Planejar e decidir em conjunto, e executar em centros especializados, reduz variação de condutas e melhora desfechos, como pede a diretriz.
Resumindo o artigo em uma frase: a atualização ESGO-ESTRO-ESP 2025 tira a biologia molecular do rodapé do laudo e a coloca no centro das decisões. Ao universalizar a classificação molecular, “molecularizar” a classificação FIGO 2023 e institucionalizar a pesquisa sistemática de Lynch, o documento entrega um mapa prático para personalizar adjuvância, vigilância e manejo da recidiva, com método robusto (30 especialistas, consenso ≥75%) e validação global (225 revisores). Se você adotar três pedidos (p53, MMR, POLE) e dois hábitos (tumor board e genética para Lynch) já amanhã na sua prática ambulatorial, grande parte do ganho dessas diretrizes passa a acontecer no dia a dia corrido do oncologista.
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