Metade dos paciente com tumores do apêndice já chega no consultório com ascite mucinosa, quadro conhecido como pseudomixoma peritoneal. A literatura é escassa: ensaios prospectivos são raros, séries de casos são pequenas e muitas vezes misturam patologias distintas. O resultado é a ausência de qualquer uniformização e padronização global de condutas: cada centro decide se começa com quimioterapia sistêmica, se parte direto para citorredução + HIPEC ou se apenas observa.
O grupo Peritoneal Surface Malignancy (PSM) Consortium reuniu cirurgiões, oncologistas, patologistas e representantes de pacientes para atualizar, via metodologia Delphi, o guideline Chicago Consensus de 2018. O documento pretende harmonizar condutas, orientar escolhas em doença irressecável, recidiva e vigilância, e poupar o paciente da loteria geográfica de tratamentos.
Metodologia
– Estrutura do grupo e processo Delphi: A força-tarefa contou com 14 especialistas de diferentes disciplinas, coordenados por dois cirurgiões-líderes e apoio de 16 “trainees” que fizeram as revisões rápidas da literatura. A votação Delphi ocorreu em duas rodadas: 138 participantes opinaram na primeira e 133 na segunda, buscando >= 90% de concordância para cada bloco do algoritmo.
– Revisões rápidas: Usando protocolos registrados no PROSPERO, o time buscou no MEDLINE três perguntas-chave: momento ideal da quimioterapia sistêmica versus cirurgia em doença que não era de baixo grau; melhor manejo do pseudomixoma irressecável (cirurgia paliativa, HIPEC, quimioterapia sistêmica, observação); segurança e beneficio de repetir citorredução/HIPEC em recidiva.
Foram triados 1473 resumos; 15 estudos entraram na síntese para doença irressecável e 14 para recidiva, todos retrospectivos, exceto um ensaio fase II de braço único.
Os achados das revisões serviram de base para rascunhar um fluxograma em dez blocos (depois reduzido a 9 porque “terapias novas” não atingiram consenso). Cada bloco orienta decisões sobre biópsia, estadiamento, indicação de citorredução, HIPEC, quimioterapia ou cuidados paliativos; o material suplementar traz justificativas e cita a evidência grau por grau.
População envolvida
Nos consensos clínicos é relevante saber quem opinou: na segunda rodada, 70% eram cirurgiões oncológicos, 14% oncologistas clínicos, 11% patologistas e 5% outros especialistas ou representantes de pacientes. Essa distribuição amplia a perspectiva mas também pende para a visão cirúrgica, algo a considerar na leitura crítica das recomendações.
Quanto aos estudos analisados, a maioria eram séries retrospectivas de centros terciários, focadas em mucinosos de baixo ou alto grau; poucos incluíam adenocarcinoma não mucinoso. Diversidade étnica e dados de países de baixa renda são praticamente ausentes, o que limita a generalização.
Resultados
Todos os nove blocos superaram 90% de concordância após a segunda rodada, indicando forte alinhamento entre os participantes.
Principais pontos do consenso
- Baixo grau: citorredução completa é recomendada para a maioria dos candidatos cirúrgicos; HIPEC pode ser adicionada
- Alto grau ou não mucinoso: preferência por quimioterapia sistêmica inicial, seguida de citorredução completa com ou sem HIPEC
- Doença irressecável: cirurgia debulking ou HIPEC podem melhorar sintomas em casos selecionados, mas a evidência é frágil e baseada em séries retrospectivas
- Recidiva: há sinal de sobrevida melhor com citorredução de repetição em pacientes cuidadosamente escolhidos (jovem, bom status funcional, baixo PCI), mas o risco de complicações grau 3-4 varia de 14% a 44%.
- Vigilância: protocolo unificado com imagem toraco-abdomino-pélvica e marcadores (CEA, CA125, CA19-9) semestral nos dois primeiros anos, depois anual até dez anos
Limitações
Todos os estudos que fundamentam manejo de doença irressecável ou recidiva são observacionais, sujeitos a viés de seleção (só opera quem já tinha melhor prognóstico) e de publicação (centros com bons resultados têm mais probabilidade de divulgar); ausência de meta-analise quantitativa; super representação por cirurgiões, com risco de enviesar a favor de cirurgias mais agressivas, mesmo quando a evidência é fraca; muitas orientações pressupõem disponibilidade de HIPEC e patologista especializado e vigilância por tomografia periódica, inviável em parte do mundo; ensaios com imunoterapia ou anti-VEGF são raros e as recomendações se baseiam em regimes clássicos e podem envelhecer rapidamente; alcançar 90% de concordância indica alinhamento, mas não garante que a estratégia seja a melhor biologicamente: apenas ensaios prospectivos e multicêntricos validarão o algoritmo (consenso não é sinônimo de verdade absoluta).
Considerações clínicas e implicações para a prática
- Traga todos à mesa: Pacientes com mucina peritoneal devem ser discutidos em tumor board com cirurgião oncológico, oncologista, radiologista e patologista experientes. O guideline oferece linguagem comum para essa conversa.
- Não subvalorize a biópsia: Documentar a histologia e o grau histológico direciona para caminhos diferentes de conduta
- Baixo grau: Pense em cirurgia curativa com citorredução completa.
- Alto grau: A quimioterapia vai na frente – reduzir carga tumoral antes de entrar no abdome tende a melhorar seleção de candidatos
- Recidiva: discuta caso a caso. Seis anos livre de doença após a primeira HIPEC não são iguais a recidiva após um ano; use idade, PCI, grau e marcadores para pesar riscoe benefício.
- Explique as incertezas: Mostre ao paciente que muitas recomendações vêm de dados retrospectivos; decisão compartilhada é vital, inclusive sobre vigilância extensa x qualidade de vida
- Desafios futuros: Ensaios randomizados comparando quimioterapia versus debulking paliativo e validação de biomarcadores genômicos são prioridades para reduzir o achismo em tumores de apêndice.
A diretriz para tumores do apêndice cecal com doença peritoneal preenche lacuna importante, oferecendo fluxo de decisão didático e fundamentado em revisão rápida da melhor evidência disponível. Contudo, o alicerce dessa casa ainda é de barro: estudos retrospectivos, heterogêneos e centrados em grandes centros. Use o guideline como mapa, mas mantenha o estetoscópio crítico: personalize cada rota segundo biologia tumoral, condição clínica, recursos locais e, sobretudo, preferências do paciente.
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