Dor crônica é quase um segundo diagnóstico para muitos pacientes com câncer. Mesmo depois do fim dos tratamentos, sintomas como dor musculoesquelética persistem por anos e dificultam atividades simples, como levantar o braço, vestir uma camisa, abrir uma garrafa, subir escadas ou caminhar alguns quarteirões. Essa limitação física reduz autonomia, piora qualidade de vida e até pode atrapalhar na continuidade dos tratamentos, uma vez que um paciente com dor intensa tende a faltar mais à fisioterapia, exercita-se menos e perde condicionamento.
Embora acupuntura já tenha evidência sólida para analgesia em câncer, sempre faltou resposta para uma pergunta prática: além de reduzir a dor ela melhora de fato a funcionalidade? Ou seja, o paciente volta a usar melhor os braços e as pernas?
Essa análise secundária do ensaio clínico PEACE conduzido pelo Memorial Sloan Kettering busca responder exatamente isso, comparando eletroacupuntura, acupuntura auricular e lista de espera em 360 sobreviventes de câncer com dor musculoesquelética crônica.

Metodologia
O PEACE foi um ensaio clínico randomizado, multicêntrico, que originalmente avaliou redução de dor. Nesta análise secundária o foco foi funcionalidade de membros superiores e inferiores
Os participantes foram distribuídos em três grupos (2:2:1):
- Eletroacupuntura: dez sessões ao longo de 10 semanas com estimulação elétrica contínua em quatro pontos próximos à área dolorosa
- Acupuntura auricular: protocolo de “battlefield acupuncture” com agulhas mantidas no pavilhão auricular por três a quatro dias
- Lista de espera: mantendo tratamento convencional da dor sem acupuntura por 12 semanas
A função dos membros superiores foi medida pelo QuickDASH (0-100; maior é pior função) e dos membros inferiores pelo WOMAC função (0-100; maior é pior função). As avaliações ocorreram no início semanas 4, 10, 12, 16 e 24.
O ponto de análise principal foi a mudança até a semana 12. Como o estudo original não foi desenhado para função, os autores utilizaram modelos mistos para ajustar diferenças e controlar por variáveis como uso de opioides e local do estudo. Também compararam pacientes com boa resposta analgésica versus não respondedores.
População envolvida
Participaram 360 pacientes, média de 62 anos, dois terços mulheres e quase metade com câncer de mama. Os tumores eram variados incluindo próstata, linfoma, melanoma e outros.
Os participantes carregavam uma história longa de sintomas:
- Dor crônica por cerca de cinco anos
- Tempo desde o diagnóstico oncológico em torno de seis anos
Os escores iniciais de QDASH e WOMAC ficavam ao redor de 33 pontos, indicando limitação funcional moderada semelhante ao que observamos em pacientes com dor persistente pós-quimioterapia ou pós-cirurgias.
Resultados
Na semana 12 comparando com a lista de espera:
- Eletroacupuntura melhorou o QuickDASH em 7,2 pontos
- Acupuntura auricular melhorou em 9,6 pontos
Ambos os valores foram estatisticamente significativos. A acupuntura auricular teve efeito ligeiramente maior, mas sem relevância estatística.
Após a semana 12 houve discreta perda do ganho funcional, embora os pacientes continuassem melhores que no início. É uma dinâmica parecida com a fisioterapia: quando as sessões terminam, parte do benefício se perde, mas ainda assim o paciente mantém progresso.
Apesar do impacto positivo, o efeito não atingiu o chamado “mínimo clinicamente importante” para o QuickDASH (12-15 pontos). Isso não significa ausência de benefício, indica apenas que talvez os pacientes tivessem limitações menos intensas no início, dificultando a detectar uma mudança maior.
Melhoras na função dos membros inferiores (WOMAC)
Aqui a resposta foi ainda mais consistente:
- Eletroacupuntura melhora de 6,9 pontos
- Acupuntura auricular melhora de 7,6 pontos
Esses ganhos foram significativos e ao contrário do QDASH, persistiram até a semana 24 sem perda relevante.
O movimento das pernas depende menos de movimentos finos e mais de padrão global, e a dor articular crônica, comum após hormonioterapia, quimioterapia ou menopausa, parece responder de forma mais duradoura à modulação da dor promovida pela acupuntura.
Relação entre resposta analgésica e melhora funcional
Essa foi uma das análises mais relevantes. Pacientes que tiveram mais de 30% de redução da dor apresentaram:
- 6,7 pontos a mais de melhora no QuickDASH
- 6,1 pontos a mais de melhora no WOMAC
Ou seja: quando a dor melhora, a função melhora junto, que é algo intuitivo para quem atende pacientes diariamente, mas que aqui foi demonstrado com dados objetivos.
Essa associação reforça uma prática clínica comum, onde pacientes com dor intensa têm dificuldade em aderir a fisioterapia. Reduzir a dor primeiro pode facilitar o engajamento em reabilitação.
Mensagem prática
Este estudo traz conclusões úteis para o dia a dia da oncologia e da reabilitação.
- Acupuntura, seja eletroacupuntura ou auricular, melhora função física
Os benefícios não se limitam à redução da dor; há impacto mensurável em atividades diárias envolvendo braços, ombros, mãos e membros inferiores
- Os maiores benefícios ocorrem quando o paciente tem dor controlada
Isso sugere que acupuntura pode ser uma ferramenta para preparar o terreno antes de terapia ocupacional ou fisioterapia
- Auricular e eletroacupuntura funcionam de forma semelhante
A auricular é mais simples, mais rápida e não exige estimulação elétrica; pode ser uma alternativa viável em serviços com menos recursos
- A melhora funcional das pernas é mais duradoura
Esse padrão pode ser relevante em pacientes com mialgias, osteoartrite ou limitações de marcha
- A intervenção é segura e aplicável no contexto ambulatorial
Não foram observados eventos graves relacionados ao procedimento, reforçando que acupuntura pode ser integrada de forma tranquila ao cuidado do sobrevivente de câncer
A análise secundária do ensaio PEACE mostra que acupuntura não só alivia dor, mas também melhora funcionalidade, especialmente em membros inferiores, com efeitos sustentados até 24 semanas. Para pacientes que convivem com dor persistente e dificuldade de realizar atividades simples, isso representa um ganho real de autonomia.
Autoria

Gabriel Madeira Werberich
Possui graduação em Medicina pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2009). Residência de Clínica Médica pela UERJ/Hospital Universitário Pedro Ernesto(HUPE)/Policlínica Piquet Carneiro(PPC). Residência Medica em Oncologia Clínica pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA). Fellowship (R4) de Oncologia Clínica no Hospital Sírio Libanês (2016). Concluiu a residência médica de Radiologia e Diagnóstico por Imagem no HUCFF-UFRJ e R4 de Radiologia do Centro de Imagem do Copa Dor, com ênfase em Ressonância Magnética de Medicina Interna, e mestrado em Medicina na UFRJ concluído em 2023. Tem experiência na área de Clínica Médica, Oncologia Clínica e Diagnóstico por Imagem em Tórax, Medicina Interna e Radiologia Oncologica. Pos-Graduação em curso de Inteligencia Artificial aplicada a Saúde.
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