O glaucoma é uma neuropatia óptica progressiva caracterizada por alterações estruturais na cabeça do nervo óptico e por defeitos de campo visual (CV). A PIO elevada é o único fator de risco modificável e, consequentemente, o principal alvo de intervenção terapêutica.
No Estudo de Tratamento do Glaucoma do Reino Unido (UKGTS), pacientes tratados com latanoprosta (hipotensor ocular tópico) apresentaram risco menor de piora do CV em relação ao grupo placebo. Entretanto, 74% dos pacientes do grupo placebo não apresentaram progressão e 15% dos pacientes tratados progrediram a despeito do tratamento.
A compreensão da associação entre a PIO e a progressão da doença é complexa por diversos fatores. Isso ocorre à medida que a aferição da PIO está susceptível a eventuais imprecisões, mesmo quando realizadas mediante protocolos rígidos. Além disso, marcadores de progressão glaucomatosa como a perimetria computadorizada e as análises métricas estruturais da cabeça do nervo óptico podem sofrer interferência de ruídos que podem confundir a avaliação da taxa real de progressão do glaucoma (RoP).
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Foi demonstrada, via modelo hierárquico bayesiano por essa equipe de pesquisa, a possibilidade de deconvoluir a distribuição da verdadeira RoP nos CV influenciados por ruídos. O modelo gerado pode ser reformulado para quantificar o efeito de variáveis específicas como a PIO na distribuição da verdadeira RoP, o que permite uma análise mais direta em relação ao mecanismo de progressão do glaucoma.
O estudo em questão foi realizado com pacientes recrutados pelo UKGTS em dez centros no Reino Unido entre 2007 e 2010 e publicado em 2025 na Investigative Ophthalmology & Visual Science.
Nesse trabalho, o objetivo foi estender o modelo para quantificar o efeito da PIO na progressão verdadeira do glaucoma utilizando medidas estruturais (via HRT – Heidelberg Retinal Tomograph – e OCT – Optical Coherence Tomography -) e funcionais (via campimetria visual) ao longo do tempo nos pacientes do UKGTS. As medidas estruturais e funcionais foram modeladas como um desfecho multivariável o que permitiu a estimativa da correlação entre suas verdadeiras RoPs.
Métodos
O UKGTS foi um ensaio clínico randomizado, duplo-cego no qual os participantes foram divididos em dois grupos: o que recebeu colírios hipotensores (latanoprosta) e o que recebeu placebo. Esses pacientes foram acompanhados por 2 anos em intervalos periódicos com a realização do CV, de imagens da cabeça do nervo óptico (HRT e OCT) e da aferição da PIO. O estudo recrutou 526 pacientes (258 no grupo dos pacientes tratados). O principal desfecho foi a progressão perimétrica baseada na Análise de Progressão Guiada (GPA).
No que tange a análise funcional, foram realizados 16 CV ao longo de 24 meses (2 por consulta) e foram incluídos os exames com taxa de falsos positivos menor ou igual a 15% e analisado o Desvio Médio (MD). Em relação às análises estruturais, foram obtidas a área da borda neurorretiniana (HRT-RA) e o perfil de espessura circumpapilar da camada de fibras nervosas da retina (OCT-pRNFL). Por fim, a PIO fora mensurada em todas as consultas utilizando a tonometria de aplanação (Goldmann).
Modelagem de Progressão
Nesse trabalho, o modelo hierárquico bayesiano possui dois níveis hierárquicos: o nível populacional e o nível do paciente (sendo um olho por paciente). O modelo estima a interceptação e a velocidade de mudança de um índice escolhido como o MD ao longo do tempo. Esses parâmetros a nível do paciente são modelados como amostras de distribuição de efeitos aleatórios cujos parâmetros são estimados a nível populacional. Nesse trabalho, assumiu-se que os índices para monitorar glaucoma só podem permanecer estáveis ou piorar ao longo do tempo.
Nesse sentido, o modelo procura traçar uma linha de progressão para cada paciente evidenciando como a visão está mudando ao longo do tempo (se está piorando e em qual velocidade). Isso ocorre na medida em que essas mudanças não ocorrem de forma completamente aleatória, mas seguem padrões que o modelo procura detectar.
Ademais, a obtenção dos parâmetros analisados está suscetível a ruídos e erros de medição que podem comprometer a análise. Com isso, o modelo converge duas ideias: a verdadeira velocidade de piora (que somente pode ser igual ou pior) e o erro de medição (que pode simular uma melhora fictícia). Além disso, o modelo leva em consideração o efeito aprendizado, no qual os pacientes obtêm resultados melhores em exames funcionais subsequentes à medida que eles aprendem a realizar o teste. Com isso, o modelo consegue discriminar uma estimativa mais realista da progressão da doença.
Assim, eles aprimoraram o modelo prévio (que avaliava a progressão do glaucoma utilizando somente um parâmetro) para analisar três parâmetros simultaneamente:
- HRT-RA: Avalia a escavação do nervo óptico (exame estrutural)
- OCT-pRNFL: Avalia a espessura média da camada de fibras nervosas da retina (exame estrutural)
- CV-MD: Avalia o desvio médio calculado pelo campo visual (exame funcional)
O objetivo de unificar a análise desses três parâmetros foi de obter uma visão mais completa e integral de como o glaucoma progride em cada olho. Dado que cada exame utiliza uma escala diferente, foi feita uma conversão dos resultados de cada exames para a mesma escala (em decibéis).
Para analisar esses três exames em um único modelo, foi utilizada uma cópula normal (também chamada de cópula gaussiana) na qual postula-se que os dados possuam correlação e isso é transformado em probabilidade para, posteriormente, aplicar aos dados reais dos exames. O modelo bayesiano utilizado foi capaz de suprir os dados eventualmente faltantes de alguns pacientes
Efeito da pressão intraocular
Utilizando o modelo estatístico descrito previamente, houve um ajuste para mensurar o efeito da PIO sobre a velocidade de progressão da doença. Para isso, fora confeccionada uma fórmula que não admite valores negativos, visto que não seria lógico haver uma melhora no quadro. A fórmula utilizada foi:
log(μ)=β0+β1 x PIO
- μ = Média invertida da RoP
- β0 e β1 = valores calculados pelo modelo
- PIO = Pressão intraocular
Os erros e ruídos nas medições foram tratados isoladamente e não foram relacionados com a PIO e o tipo de tratamento. Além disso, o modelo foi ajustado ao centralizar e normalizar a PIO. Contudo, o modelo não consegue estimar a RoP individualmente por cada paciente, somente para todos os pacientes juntos.
Análises suplementares
Além da conversão de todos os exames para decibéis, foram necessários realizar alguns ajustes. No que diz respeito ao “floor effect”, que ocorre quando exames estruturais (OCT, HRT) não detectam progressão de dano em casos avançados, foi realizado um ajuste com a estimativa de um valor mínimo antes do cálculo para evitar resultados negativos. Além disso, foi feita uma correlação mais precisa entre estrutura (áreas do OCT/HRT) e função (áreas do CVC) para que as áreas analisadas em cada exame sejam análogas às áreas do outro exame.
Computação bayesiana
Foram utilizados os programas JAGS (“Just Another Gibbs Sampler”) e R (“The R Project for Statistical Computing”) para executar a amostragem de Monte Carlo da cadeia de Markov com distribuição posterior. Com isso, foram utilizadas duas cadeiras paralelas, com intervalo de 100 amostras e descarte dos primeiros 5000 resultados para minimizar o efeito dos valores instáveis iniciais.
Fora realizado o teste diagnóstico de Gelman-Rubin para assegurar a estabilidade e confiança das simulações. Posteriormente, essas duas cadeias foram mescladas e utilizadas para calcular um intervalo de confiança de 95% e uma métrica bayesiana similar a um valor de P bilateral (P “bayesiano”).
RESULTADOS
Ao todo, 436 olhos foram analisados. Desses, 313 apresentaram medidas suficientes para todas as métricas, 98 para CV e HRT apenas, 17 para CV e OCT apenas, dois para OCT e HRT apenas e 6 para CV apenas.
Efeito do tratamento na verdadeira taxa de progressão
Em relação aos três parâmetros analisados isoladamente, houve diferença estatisticamente significativa apenas no parâmetro funcional (CV-MD). O grupo de pacientes tratados com a latanoprosta evoluiu de forma mais lenta que o grupo tratado com placebo.
A média estimada da verdadeira RoP foi mais rápida no parâmetro funcional (CV-MD) em relação aos parâmetros estruturais (HRT-RA e OCT-pRNFL) (p < 0,001). No grupo que recebeu a latanoprosta, a HRT-RA em relação ao OCT-pRNFL apresentou uma RoP significativamente mais lenta (p=0,007).
Ademais, houve uma correlação positiva para a verdadeira RoP entre os três parâmetros analisados (CV-MD, HRT-RA e OCT-pRNFL). Apesar de não ter atingido o limiar de significância nos exames estruturais, a taxa de progressão foi menor nos grupos que receberam a latanoprosta.
Efeito da pressão intraocular na progressão verdadeira do glaucoma
A PIO mostrou um efeito evidente e significativo na progressão do glaucoma para os três parâmetros analisados: CV-MD (p<0,001), HRT-RA (p=0,001), OCT-pRNFL (P = 0,006).
O campo visual mostrou progressão mais rápida em relação aos demais exames, porém não houve diferença estatisticamente significativa quando realizada comparação direta entre os 3 exames (p=0,15). Além disso, foi observado que não houve diferença estatisticamente significativa na influência da PIO na RoP entre os grupos de pacientes que receberam a latanoprosta e aqueles que receberam placebo.
Análises complementares
Ao analisar áreas específicas retinianas (região temporal da cabeça do nervo óptico e a região nasal do campo visual), houve uma RoP mais pronunciada no campo visual em relação aos exames estruturais (p=0,007). Ao corrigir o “efeito floor” dos exames estruturais, houve um aumento da verdadeira RoP desses exames, porém ainda inferior à RoP obtida pela campimetria (p=0,002)
Discussão
O trabalho procurou reduzir as interferências de medição comumente observadas nos exames funcionais e estruturais de glaucoma para compreender melhor as verdadeiras taxas de progressão da doença, a influência da PIO nesse processo e a diferença entre grupos tratados clinicamente de grupos não tratados. Para isso, foi realizado o modelo hierárquico bayesiano supracitado e realizada modelagem da “verdadeira” taxa de progressão
A campimetria, exame funcional, foi o que mostrou progressão mais rápida em relação aos demais exames estruturais. Isso pode ser justificado pela perda da função das células neuronais antes da sua morte celular, o que é detectado funcionalmente antes da perda estrutural.
Outro ponto observado no estudo foi que, ao compensar o “efeito floor” que daria uma falsa ideia de progressão mais lenta nos exames estruturais, houve uma taxa de progressão mais rápida que parece detectar a perda de forma mais parecida com o exame funcional.
Em relação ao impacto do tratamento, a campimetria foi o único parâmetro em que houve diferença estatística entre os grupos (latanoprosta vs. placebo). Além disso, não houve diferença significativamente estatística no efeito da PIO entre os dois braços, o que descartou a possibilidade de outros mecanismos justificarem o efeito do tratamento que não seja a redução da PIO.
Limitações
O estudo apresentou limitações no que tange às tecnologias utilizadas. O HRT e Stratus OCT estão ultrapassados e existem aparelhos com maior nível de precisão da análise morfológica da cabeça do nervo óptico como o OCT de domínio espectral, o que reduziria os ruídos na obtenção das imagens.
Além disso, poderiam ter sido utilizadas estratégias de inteligência artificial na confecção de algoritmos que pudessem conferir maior precisão às análises realizadas.
Mensagem prática
O trabalho mostrou que a progressão funcional parece preceder a estrutural, porém isso pode estar atrelado ao “efeito floor” e à precisão restrita dos exames estruturais utilizados. Além disso, foi observado que a PIO média influencia diretamente ambas as progressões: funcional e estrutural.
Na prática, o trabalho ressalta a importância de seguir regularmente os pacientes com glaucoma tanto com exames funcionais (campimetria) quanto com exames estruturais (como o OCT) visto que a progressão da doença pode ocorrer de forma não simultânea entre esses exames. Ademais, é imprescindível o controle rigoroso da PIO nesses pacientes, visto que a evolução do dano glaucomatoso está intimamente atrelada a um inadequado controle pressórico.
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