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Neurologia20 março 2020

Sistema nervoso central e periférico: alvos potenciais da Covid-19

Além dos sintomas sistêmicos provocados pela Covid-19 (febre alta, tosse seca, dificuldade para respirar) é comum ocorrer cefaleia, mialgia e fadiga.

Nos últimos anos temos vivido períodos de constante apreensão quanto ao acometimento do sistema nervoso no curso das diferentes zoonoses emergentes. Em textos anteriores ao Portal PEBMED, chamou-se a atenção das relações dos vírus zika e chikungunya com manifestações neurológicas, particularmente de meningites, encefalites, mielites, radiculoneurites (síndrome de Guillain-Barré – SGB) associadas a esses vírus.

células do sistema nervoso com covid-19

Coronavírus e neurologia

Além dos sintomas sistêmicos frequentes provocados pela Covid-19 (febre alta, tosse seca, dificuldade para respirar, cansaço, fadiga e diarreia) é comum ocorrer cefaleia, mialgia e fadiga. Em texto recente, Henrique Cal nos trouxe os resultados publicados por Mao et al, em 28 de fevereiro, quanto aos achados neurológicos observados em 78 pacientes em três hospitais de Wuhan, China. As alterações neurológicas, distribuídas em três grupos, incluíram:

  • Em 53 pacientes, sintomas relativos ao sistema nervoso central (SNC – cefaleia, tontura, sonolência/redução do nível de consciência, ataxia, AVC isquêmico e crises convulsivas);
  • Em 19 pacientes relacionados ao sistema nervoso periférico (SNP – hipogenesia, hiposmia e neuralgias);
  • Em 23 pacientes queixas musculares, principalmente mialgias. Esses sintomas foram observados nos casos mais graves.

Sabemos que muitas dessas manifestações, particularmente as relacionadas ao SNC, podem ser notadas em pacientes críticos com comprometimento pulmonar e/ou renais de variável intensidade. Evocam-se mecanismos diretos e indiretos, possivelmente relacionados à enzima conversora da angiotensina 2 (ACE-2), presente inclusive no SNC. Poderia haver penetração no SNC ou SNP por via hematogênica ou por via neuronal retrógrada através do nervo olfatório (hiposmia é frequente). Presença do vírus no líquor em cepas anteriores aponta para atuação no SNC.

A Covid-19, como o SARS-CoV, utiliza uma proteína spike S1 que permite a ligação a membrana celular interagindo com o receptor ACE2 do hospedeiro. O cérebro expressa receptores ACE2 detectados em neurônios e células gliais, o que os torna um alvo potencial da doença pelo novo coronavírus.

Esses achados fazem-nos considerar a possibilidade do desenvolvimento de processos reativos imunomediados no SNC, promovendo encefalites, mielites, radiculites, polirradiculoneurites, muitas das vezes desmielinizantes, semelhantes às doenças desmielinizantes do SNC e/ou SNP, como, por exemplo, a encefalomielite aguda disseminada (ADEM) e a SGB. Devemos estar atentos para essas possibilidades no curso ou na fase de resolução da infecção pela Covid-19, como ocorreu para outros vírus neurotrópicos.

A participação de processo imune está inclusive corroborada pelos resultados ora publicados por Gao, Tian e Yang (2020) chamando a atenção da atuação da cloroquina em reduzir as lesões pulmonares e o tempo de hospitalização na fase aguda da virose. A cloroquina, um antimalárico, sabidamente é utilizada em doenças autoimunes com bons resultados. Não podemos esquecer que o parasitismo neuronal progressivo poderá, também, desencadear quadros clínicos variados semelhantes a processos degenerativos conhecidos, tais como parkinsonismo, atrofia de múltiplos sistemas, outros.

A interferência na atividade neuronal e glial, documentado em epidemias prévias como referido na Tabela, poderá ser responsável pelas síndromes acima, bem como comprometer o desenvolvimento neuronal. Ainda, atenção especial deve ser dada a gestantes; por ora, não há evidências de lesão cerebral pelo coronavírus ao feto, porém complicações clínicas durante este período, tais como sofrimento fetal por hipoxemia materna, poderiam acarretar em fatores de risco neurológico no período embrionário-fetal. Portanto, monitoramento neurológico, inclusive com exames de neuroimagem, quando clinicamente indicado, bem como do desenvolvimento neuropsicomotor em neonatos e lactentes, se fazem necessários ao longo da primeira infância.

Autores/ano

Principais achados 

Conclusões

Li, 2015Estudo experimental: MERS-CoV pode ter acesso ao sistema nervoso central humano, via barreira hemato-encefálica, linfática ou outras vias, onde células que expressam receptor DPP4 podem proporcionar a replicação viral.MERS pode estar associado a manifestações neurológicas progressivas.
Zhao, 2015Estudo experimental: camundongos transgênicos hDPP4 demonstraram um período de incubação mais longo após a infecção e desenvolveram

pneumonia progressiva e distúrbios neurológicos acompanhados por dano histológico em pulmões, cérebro, baço e fígado.

O modelo de camundongo transgênico desenvolvido neste estudo foi infectado eficientemente por MERS-CoV e exibiu lesão respiratória aguda grave e manifestações extrapulmonares.
Yamashita et al, 2005Estudo experimental: células progenitoras neuronais de humanos e rato, que expressam níveis indetectáveis ​​de ACE2, apresentaram replicação do vírus SARS-CoV, embora os níveis de replicação tenham sido extremamente baixos em comparação com outras linhas celulares.Células progenitoras neuronais de humanos e rato mostraram-se suscetíveis à infecção por SARS-CoV, sem efeitos citopáticos aparentes.
Desforges et al, 2014Revisão: coronavírus com ação neurotrópica podem danificar o sistema nervoso central como resultado de respostas imunes do hospedeiro mal direcionadas que podem estar associadas à autoimunidade em indivíduos suscetíveis (“neuroimunopatologia” induzida por vírus) e / ou replicação viral, que induz diretamente danos às células do SNC (“neuropatologia induzida por vírus”). Embora o mecanismo pelo qual eles atingem o SNC humano ainda esteja sendo estudado, pelo menos três dos seis coronavírus que infectam humanos mostraram-se neuroinvasivos e neurotrópicos em humanos: HCoV-229E, HCoV-OC43 e SARS-CoV.Os coronavírus humanos respiratórios são naturalmente neuroinvasivos e neurotrópicos, com conseqüências neuropatológicas em indivíduos geneticamente ou de outra forma suscetíveis, com ou sem insultos externos.

Tabela: correlação entre coronavírus e manifestações no sistema nervoso central em epidemias prévias.

Conclusão

Diferentes síndromes clínicas neurológicas, indicando comprometimento do SNC ou SNP, são eventualidades que não podemos descartar em pacientes infectados pela Covid-19, não somente na fase aguda mas, particularmente, nos meses e semanas subsequentes. Caberá ao profissional da saúde estar atento para solicitar ao neurologista avaliação clínica e complementar pertinente.

Ainda que, por ora, não haja evidências de acometimento embrionário-fetal pelo Covid-19, sugere-se um aumento da vigilância e monitoramento em neonatos e lactentes cujas mães foram acometidas pelo vírus durante a gestação.

Em conjunto com:

  • Marcio Leyser – Professor Associado de Pediatria e Pediatria do Desenvolvimento e Comportamento. University of Iowa – Stead Family Department of Pediatrics.
  • Fernanda Marques – Doutoranda em Neurologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Pediatra da rede Sarah RJ
  • Henrique Cal – Doutorando em Neurologia da UFF – Neurologista dos Hospitais Pró-Cardíaco e Copa D’Or

Referências bibliográficas:

  • Ling Mao et al, 2020. Neurological Manifestations of Hospitalized Patients with COVID-19 in Wuhan, China: a retrospective case series study.. https://doi.org/10.1101/2020.02.22.20026500.
  • Xiao-Wei Xu, 2020. Clinical findings in a group of patients infected with the 2019 novel coronavirus (SARS-Cov-2) outside of Wuhan, China: retrospective case series – BMJ 2020
  • Gao J, Tian Z, Yang X. Breakthrough: chloroquine phosphate has shown apparent efficacy in treatment of COVID-19 associated pneumonia in clinical studies. Biosci Trends 2020 Feb 19 [Epub ahead of print]. doi: 10.5582/bst.2020.01047.
  • Li K, Wohlford-Lenane C, Perlman S, Zhao J, Jewell AK, Reznikov LR, Gibson-Corley KN, Meyerholz DK, McCray Jr PB. Middle East respiratory syndrome coronavirus causes multiple organ damage and lethal disease in mice transgenic for human dipeptidyl peptidase 4. The Journal of infectious diseases. 2016 Mar 1;213(5):712-22.
  • Zhao G, Jiang Y, Qiu H, Gao T, Zeng Y, Guo Y, Yu H, Li J, Kou Z, Du L, Tan W. Multi-organ damage in human dipeptidyl peptidase 4 transgenic mice infected with Middle East respiratory syndrome-coronavirus. PLoS One. 2015;10(12).
  • Yamashita M, Yamate M, Li GM, Ikuta K. Susceptibility of human and rat neural cell lines to infection by SARS-coronavirus. Biochemical and biophysical research communications. 2005 Aug 19;334(1):79-85.
  • Desforges M, Le Coupanec A, Stodola JK, Meessen-Pinard M, Talbot PJ. Human coronaviruses: viral and cellular factors involved in neuroinvasiveness and neuropathogenesis. Virus research. 2014 Dec 19;194:145-58.
  • Baig AM, Khaleeq A, Ali U, Syeda H. Evidence of the COVID-19 Virus Targeting the CNS: Tissue Distribution, Host–Virus Interaction, and Proposed Neurotropic Mechanisms. ACS Chemical Neuroscience. 2020 Mar 13.
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