O câncer de orofaringe associado ao HPV é hoje um dos tumores que mais crescem nos países desenvolvidos, especialmente entre homens de meia-idade com poucos fatores de risco clássicos como o tabagismo. Graças à alta sensibilidade tumoral à radioterapia e à quimioterapia, esses pacientes apresentam excelentes taxas de cura, frequentemente superiores a 90%. O problema é que o preço desse sucesso tem sido alto: sequelas crônicas como xerostomia, disfagia, fibrose cervical, osteorradionecrose e perda auditiva comprometem gravemente a qualidade de vida.
Por isso, há quase uma década a comunidade oncológica busca desintensificar o tratamento, mantendo a cura, mas com menos agressividade. A hipótese é que, se o tumor é mais radiossensível, talvez não seja necessário o mesmo volume e dose de radiação de um carcinoma escamoso tradicional do trato aerodigestivo superior. O estudo MC1675, conduzido pela Mayo Clinic e publicado no Lancet Oncology em setembro de 2025, é o primeiro ensaio clínico de fase 3 a testar de forma robusta uma redução radical de dose: 30-36 Gy em 2 semanas, comparado ao padrão de 60 Gy em 6 semanas. O objetivo era simples e direto, visando verificar se essa estratégia mantém o controle da doença com muito menos toxicidade.

Desenho metodológico
O MC1675 foi um ensaio clínico randomizado, aberto e controlado, conduzido em dois centros da Mayo Clinic (Minnesota e Arizona). Foram incluídos pacientes adultos com carcinoma epidermoide de orofaringe positivo para HPV, estágios III-IV (AJCC 7ª edição), todos operados com intenção curativa e com margens livres. Todos precisavam ter pelo menos um fator de risco patológico intermediário (como invasão linfovascular, invasão perineural, linfonodo >3 cm ou dois ou mais linfonodos acometidos) ou o fator de alto risco clássico: extensão extranodal (ENE).
A randomização foi feita em proporção 2:1, favorecendo o grupo experimental de radioterapia de-escalonada (DART). Os pacientes sem ENE receberam 30 Gy em 1,5 Gy duas vezes ao dia por 2 semanas, mais docetaxel 15 mg/m² nos dias 1 e 8. Aqueles com ENE receberam um pequeno reforço na área comprometida, totalizando 36 Gy. Já o grupo padrão recebeu 60 Gy em 2 Gy/dia por 6 semanas, com cisplatina 40 mg/m² semanal.
O desfecho primário foi a taxa de toxicidade crônica grau 3 ou maior entre 3 e 24 meses após o tratamento. Desfechos secundários incluíram sobrevida global (SG), sobrevida livre de progressão (SLP), controle locorregional, metástase à distância e qualidade de vida (QOL) medida por instrumentos padronizados como FACT-HN, EORTC QLQ-HN35 e XeQoLS (xerostomia).
O estudo teve poder estatístico de 90% para detectar uma redução na toxicidade de 25% para 7%.
População envolvida
Entre outubro de 2016 e agosto de 2020, 254 pacientes foram triados; 228 foram randomizados e 194 completaram o tratamento (130 na DART e 64 no padrão). A idade média foi de 59 anos, com predominância masculina (89%) e população majoritariamente branca (95%). A maioria apresentava tumores de amígdala ou base de língua, e cerca de 70% eram não fumantes.
Todos os pacientes foram operados por via transoral (robótica ou laser) seguida de esvaziamento cervical seletivo. O acompanhamento mediano foi de 37 meses, tempo suficiente para avaliar recidiva e toxicidades tardias.
Resultados
- Toxicidade:
O principal achado foi a redução significativa das toxicidades graves. Entre 3 e 24 meses após o tratamento, 3% dos pacientes do grupo DART tiveram eventos grau ≥3, contra 11% no grupo padrão (p=0,042). A necessidade de sonda de alimentação por gastrostomia (PEG) caiu de 8% para 2% (p=0,039). As toxicidades mais comuns no grupo experimental foram disfagia e esofagite leve; no grupo padrão, disfagia grave, dor e osteonecrose mandibular.
Além disso, o tempo médio de toxicidade crônica foi menor: 2 meses no grupo DART contra 3 meses no grupo padrão. Em linguagem prática, os pacientes voltaram a comer, falar e viver normalmente mais rápido.
- Qualidade de vida:
Os ganhos funcionais foram expressivos e persistentes. Xerostomia medido pelo XeQoLS foi significativamente menor até 2 anos (média 4,6 vs 8,5; p=0,0034). Na escala de dor e deglutição do EORTC HN35, o grupo DART teve melhores escores (5,5 vs 14,2 e 5,0 vs 14,5, respectivamente; p<0,01). No questionário global FACT-HN, a diferença média aos 24 meses foi de +7,4 pontos a favor da DART, equivalente ao que se espera após reabilitação fonoaudiológica intensiva.
- Eficácia oncológica:
As taxas de sobrevida global e controle da doença foram excelentes em ambos os braços.
– SG em 2 anos: 96,9% (DART) vs 98,3% (p=0,5)
– SLP em 2 anos: 88,2% vs 96,6% (p=0,02, diferença concentrada em pacientes com ENE)
– Controle locorregional: 95,9% vs 98,3% (p=0,26)
Ou seja, a redução de dose não comprometeu a eficácia para a maioria, especialmente entre os de risco intermediário (sem ENE). Já no grupo com ENE (alto risco), houve mais recidivas e metástases à distância com a DART, indicando que talvez o esquema seja seguro apenas para tumores realmente confinados e com poucos fatores adversos.
Um dado interessante: entre os pacientes sem ENE (coorte A), a SLP foi de 98% com DART, praticamente idêntica ao padrão. Em contrapartida, entre os de alto risco (coorte B, com ENE), a SLP caiu para 81% vs 97% no padrão (p=0,0049).
Considerações clínicas e implicações para a prática
O MC1675 é um divisor de águas na discussão sobre desintensificação do tratamento do câncer de orofaringe por HPV. Os resultados confirmam que é possível reduzir a dose pela metade, de 60 para 30-36 Gy, com preservação da eficácia e ganhos reais de qualidade de vida, desde que o paciente tenha risco intermediário e margens cirúrgicas negativas.
Do ponto de vista clínico:
1) Menos semanas, menos sequelas. O protocolo de 2 semanas é mais curto, menos tóxico, reduz custos e sofrimento. Muitos pacientes voltaram ao trabalho e à alimentação sólida em menos tempo.
2) Evite em casos com extensão extranodal. Pacientes com ENE ou N2 tiveram mais metástases e pior SLP, sugerindo que o regime é insuficiente para doença mais agressiva.
3) Docetaxel leve é seguro. O uso de duas doses semanais substituiu a cisplatina e foi bem tolerado, sem toxicidade hematológica importante.
4) A importância de selecionar bem o paciente. A desintensificação não é para todos. Ela depende de cirurgia bem-feita, margens negativas e fatores de risco limitados.
Na prática diária, esse estudo sinaliza que a radioterapia de baixa dose pode ser uma alternativa segura para parte dos pacientes com câncer de orofaringe por HPV, reduzindo significativamente disfunções de fala e deglutição, uma das principais queixas dos sobreviventes.
Ainda não é tempo de mudar diretrizes amplamente, mas o caminho está traçado: personalizar o tratamento, equilibrando cura e qualidade de vida. Em resumo, menos pode ser o suficiente, desde que seja feito com critério.
Autoria

Gabriel Madeira Werberich
Possui graduação em Medicina pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2009). Residência de Clínica Médica pela UERJ/Hospital Universitário Pedro Ernesto(HUPE)/Policlínica Piquet Carneiro(PPC). Residência Medica em Oncologia Clínica pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA). Fellowship (R4) de Oncologia Clínica no Hospital Sírio Libanês (2016). Concluiu a residência médica de Radiologia e Diagnóstico por Imagem no HUCFF-UFRJ e R4 de Radiologia do Centro de Imagem do Copa Dor, com ênfase em Ressonância Magnética de Medicina Interna, e mestrado em Medicina na UFRJ concluído em 2023. Tem experiência na área de Clínica Médica, Oncologia Clínica e Diagnóstico por Imagem em Tórax, Medicina Interna e Radiologia Oncologica. Pos-Graduação em curso de Inteligencia Artificial aplicada a Saúde.
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