A ganglionopatia sensitiva é uma síndrome distinta das neuropatias periféricas tradicionais. Em vez de afetar os axônios distais, o processo inflamatório ou tóxico atinge diretamente os gânglios sensitivos da raiz dorsal, onde se localizam os corpos celulares dos neurônios aferentes.
O artigo publicado por Anthony Amato e Allan Ropper no New England Journal of Medicine (2020) sintetiza, com clareza e rigor, os avanços no entendimento, diagnóstico e manejo dessas condições. Veja como esse artigo continua importante!
Definição e mecanismos patológicos
A ganglionopatia sensitiva (também chamada neuronopatia sensitiva) resulta de uma lesão primária dos neurônios do gânglio da raiz dorsal, levando à perda de aferência sensorial em padrões não dependentes do comprimento das fibras.
Diferente das neuropatias periféricas — nas quais os sintomas começam nos pés e ascendem simetricamente —, na ganglionopatia a perda pode iniciar em regiões proximais, face, tronco ou mãos, de forma assimétrica e multifocal.
A barreira hemato-nervo nos gânglios é mais permeável, tornando-os vulneráveis à autoimunidade, toxicidade, infecções ou paraneoplasias. O dano pode ser irreversível, pois envolve a destruição dos corpos neuronais, e não apenas das fibras.
Quadro clínico característico
A ganglionopatia sensitiva não causa fraqueza motora, mas altera profundamente o controle postural e a sensibilidade. Os principais achados incluem:
- Perda de sensibilidade tátil, vibratória e proprioceptiva (grandes fibras);
- Ataxia sensitiva e instabilidade postural, com sinal de Romberg positivo e pseudoatetose;
- Abolição dos reflexos tendinosos profundos;
- Quando há envolvimento de pequenas fibras, dor neuropática em queimação, alodinia e parestesias.
A distribuição é tipicamente assimétrica e proximal, podendo afetar face e tronco. Essa característica frequentemente confunde o diagnóstico, sendo interpretada como distúrbio funcional, esclerose múltipla ou mielopatia.

Principais causas da ganglionopatia sensitiva
A revisão do NEJM (2020) destaca seis grandes grupos etiológicos :
- Paraneoplásica
A forma mais clássica é associada ao carcinoma de pequenas células do pulmão, mas também ocorre em tumores de mama, ovário, próstata, estômago e linfoma.
Relaciona-se a anticorpos anti-Hu (ANNA-1), anti-CRMP5 e antiamfifisina, marcadores de resposta imune T citotóxica dirigida aos neurônios dos gânglios dorsais.
Pode coexistir com encefalite límbica, mielite ou degeneração cerebelar.
- Autoimune sistêmica
A síndrome de Sjögren é a principal causa autoimune não paraneoplásica.
Até 15% dos pacientes com Sjögren apresentam neuropatia, e cerca de 40% dessas são ganglionopatias de grandes fibras.
O envolvimento trigeminal (com anestesia facial ou perioral) é frequente e pode preceder os sintomas clássicos de olho e boca secos.
Lúpus e doença mista do tecido conjuntivo também estão associados.
- Infecciosa
Ocorre em associação a HIV, HTLV-1, Epstein–Barr, Zika, varicela-zoster e lepra.
Esses agentes podem causar ganglionite inflamatória segmentar.
- Tóxica e induzida por drogas
A neurotoxicidade por platinas (cisplatina, oxaliplatina, carboplatina) é uma das causas mais reconhecidas.
Provoca ataxia sensitiva e sinal de Lhermitte, com piora mesmo após a suspensão da quimioterapia (fenômeno de “coasting”).
Outra causa é a toxicidade por vitamina B6 (piridoxina), que em doses elevadas (≥ 2 g/dia, ou uso crônico > 100 mg/dia) pode gerar disestesia e instabilidade postural.
- Induzida por imunoterapia
Inibidores de checkpoint imunológico, como pembrolizumabe e nivolumabe, podem induzir ganglionopatia sensitiva autoimune isolada ou associada a quadro tipo Sjögren induzido por drogas.
- Idiopática
Representa cerca de metade dos casos.
Predomina em mulheres de meia-idade e pode manifestar-se como:
- Forma de grandes fibras (com ataxia e perda proprioceptiva);
- Forma de pequenas fibras (com dor e disautonomia).
O curso clínico pode ser monofásico, crônico progressivo ou recorrente.
Diagnóstico
O diagnóstico é clínico e eletrofisiológico, apoiado por exames laboratoriais e de imagem.
Estudos de condução nervosa:
- Redução das amplitudes dos potenciais sensitivos (SNAPs);
- Padrão não dependente do comprimento do nervo (superiores frequentemente mais afetados que inferiores);
- Velocidades e latências preservadas.
Eletromiografia:
- Normal, já que as fibras motoras não são acometidas.
Líquor:
- Pode apresentar proteína elevada ou bandas oligoclonais, embora muitas vezes seja normal.
Sorologias e autoanticorpos:
- Anti-Hu, anti-CRMP5, antiamfifisina (paraneoplásicos);
- Anti-Ro e anti-La (Sjögren);
- Anti-FGFR3 e antitrissulfato de heparina dissacarídeo (associação ainda incerta).
Imagem e biópsia:
- PET-CT é fundamental na busca de tumores ocultos;
- Biópsia de glândula salivar pode confirmar Sjögren mesmo com sorologia negativa;
- Biópsia de pele demonstra perda de fibras intraepidérmicas em padrão não distal;
- Ressonância magnética pode mostrar realce dos gânglios dorsais e degeneração das colunas posteriores.
Tratamento e prognóstico
O tratamento depende da etiologia e deve ser iniciado precocemente:
- Formas paraneoplásicas: controle do tumor é essencial, embora a recuperação neurológica seja incomum devido à perda neuronal irreversível.
- Formas autoimunes: corticoides, imunoglobulina intravenosa, plasmaférese, imunossupressores (azatioprina, micofenolato) e rituximabe podem estabilizar ou melhorar os sintomas.
- Tóxicas: suspensão imediata do agente e reabilitação física.
O prognóstico é melhor quando a imunoterapia é iniciada nas primeiras oito semanas após o início dos sintomas.
Mesmo assim, a recuperação completa é rara, e a estabilização costuma ser o objetivo realista.
Diagnóstico diferencial
A ganglionopatia sensitiva deve ser distinguida de:
- Polineuropatia axonal distal (padrão dependente do comprimento e simétrico);
- Mielopatia das colunas posteriores (déficit sensitivo proprioceptivo, mas com RM medular alterada);
- Transtornos funcionais (ausência de correlação neuroanatômica);
- Doenças mitocondriais e deficiência de vitamina E (em pacientes jovens com ataxia).
O reconhecimento do padrão topográfico — sensitivo puro, assimétrico e não distal — é o ponto-chave do diagnóstico.
Conclusão
A ganglionopatia sensitiva representa um modelo singular de lesão do sistema nervoso periférico, em que o alvo primário são os corpos neuronais dos gânglios dorsais.
O artigo do New England Journal of Medicine (2020) reforça que o diagnóstico precoce e a investigação etiológica direcionada são fundamentais para identificar formas tratáveis e evitar déficits irreversíveis.
A compreensão desse grupo de doenças, na interseção entre neurologia, imunologia e oncologia, é essencial para o neurologista moderno.
Mais do que uma neuropatia rara, a ganglionopatia sensitiva é um lembrete de que a topografia clínica, quando bem interpretada, continua sendo uma das ferramentas mais poderosas da medicina neurológica.
Autoria

Thiago Nascimento
Formado em Medicina pela Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF) em 2015. Residência Médica em Neurologia no Hospital Geral Roberto Santos (HGRS) Salvador - Bahia (2016-2019). Membro titular da Academia Brasileira de Neurologia (ABN). Mestrando em Ciências da Saúde pela UFBA (PPGCs - UFBA). Preceptor da Residência de Neurologia do HU- UFS - (Ebserh - Aracaju- SE). Médico Neurologista - Membro do Ambulatório de Neuroimunologia do HU- UFS - (Ebserh - Aracaju- SE). Professor na Afya Educação Médica.
Como você avalia este conteúdo?
Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.