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Neurologia28 março 2017

Alguns ensaios clínicos nos ensinam: “primo non nocere”, e menos é mais

Quando você, clínico, lê uma chamada de notícia que contem os termos “novo tratamento”, qual a ideia que lhe vem à cabeça?

Por Colunista

Quando você, clínico, lê uma chamada de notícia, seja em uma publicação científica ou na imprensa, que contem os termos “novo tratamento”, qual a ideia que lhe vem à cabeça? Aqui, acredito que a reação é provavelmente muito parecida com a do público em geral, assim como a ideia que eu também tinha até algum tempo atrás. Pensamos em um novo fármaco, correto? E certamente, a ideia vem acompanhada de uma sensação de entusiasmo. Qual novo tratamento deve acrescentar ao rol de cuidados que prescrevo para meus pacientes?

Tentemos então questionar isto, e para isso vamos fazer alguns exercícios de imaginação. A título de ilustração. Quantos ensaios clínicos são realizados anualmente testando um novo tratamento para uma doença? Se buscarmos por “stroke” no registro clinicaltrials.gov, chegamos a uma lista de 7.111 estudos clínicos. Suponhamos então que (apenas) 10 destes demonstrem eficácia clínica de uma nova droga. Isso significaria mais dez fármacos dentro do cuidado padrão de pacientes com AVC. Agora suponhamos este processo se repetindo ao longo dos anos. Chegaríamos talvez ao cenário de um sem número (cada vez maior) de intervenções para tratamento de uma doença.

Quando existem múltiplas respostas distintas para uma pergunta, provavelmente nenhuma delas é definitiva. Em termos médicos, se uma doença tem inúmeros tratamentos – muitas vezes cada um com um impacto pequeno – então é possível que nenhum deles esteja realmente endereçando a fisiopatologia e patogenia da doença de forma realmente efetiva. Qual seria o real sentido, por exemplo, de utilizarmos estatinas e antiagregantes em pacientes com AVC isquêmico, se não estivéssemos acima de tudo almejando a reperfusão eficaz da obstrução arterial aguda. Um sem número de novos medicamentos e “neuroprotetores” poderia ser testado (e até demonstrar benefício) em pacientes com AVC isquêmico, porém se não endereçássemos o ponto fisiopatológico essencial – a obstrução arterial aguda – estaríamos perdendo o essencial da questão.

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Agora façamos um segundo exercício de imaginação. Imaginemos um tratamento altamente eficaz para o AVC isquêmico. Porém, alguns pacientes apresentam um alelo que codifica uma proteína que aumenta o risco de efeitos adversos graves ao tratamento, anulando seu benefício. Ensaios clínicos não são desenhados para captar este tipo de heterogeneidade de tratamento. Como ajustar o tratamento para este paciente em especial?

Felizmente, a tradição da formação médica sempre teve como esteio a ideia de que considerações diagnósticas e decisões terapêuticas são práticas da beira do leito e têm como foco um paciente. Aquele paciente, único, individual, que temos ao nosso cuidado. Entretanto, não existe ensaio clínico de um paciente, e novos tratamentos são testados em grupos heterogêneos de pacientes. Um dos grandes desafios da medicina contemporânea é o de unir este cuidado individualizado à prática da medicina baseada em evidência. Assim, sempre que pensarmos em novos tratamentos, devemos pensar em como novos estudos clínicos podem nos apontar não somente em “mais uma droga”, mas em aperfeiçoar nossas abordagens terapêuticas atuais. Isso pode significar mudanças em termos de dose, de risco, mas também em termos de individualização do tratamento. E claro, devemos nos perguntar: este tratamento novo de fato endereça uma questão fisiopatológica fundamental à doença?

O artigo desta semana traz alguns exemplos neste sentido, o mais emblemático deles sendo o ensaio ENCHANTED. Este estudo clínico, um ensaio multicêntrico, internacional, de fase 3, testou uma dose menor de alteplase de 0,6 mg por kg de peso corporal para o AVC isquêmico agudo, em vez da dose habitual de 0,9 mg por kg. Apesar do objetivo primário do estudo – de demonstrar não-inferioridade para reduzir incapacidade funcional no longo prazo – não ter sido atingido, o estudo demonstrou uma redução pela metade da taxa de transformação hemorrágica sintomática. Embora não se possa afirmar que 0,6 mg possa ser aplicado como tratamento não inferior para o grupo geral dos pacientes, talvez seja possível que o uso da dose reduzida seja mais indicada em subgrupos de pacientes específicos com risco aumentado de transformação hemorrágica, como parece ser, por exemplo, o caso de pacientes com angiopatia amiloide cerebral e micro-hemorragias cerebrais.

Veja mais: ‘Protocolo versus Medicina Individualizada na Terapia Intensiva’

Novos estudos endereçando estas questões podem derivar deste ensaio clínico, o que levaria a um aperfeiçoamento do tratamento atual. A trombólise intravenosa é sem sombra de dúvida o tratamento mais importante do AVC isquêmico agudo, e almeja aquele que é o alvo biológico mais claramente essencial, a reperfusão aguda. Porém faremos este ano, 22 da aprovação da trombólise para o AVC isquêmico e esta têm sido aplicada sem novidades substanciais desde então: não se questiona o potencial uso de dose diferentes em subgrupos específicos, o uso de fibrinolíticos alternativos ou uso de adjuvantes. O ensaio ENCHANTED abre um horizonte novo neste campo.

Referência:

  • Rothwell, Peter M. Stroke research in 2016: when more medicine is better, and when it isn’t. The Lancet Neurology , Volume 16 , Issue 1 , 2 – 3.
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