Barreiras para o cuidado de saúde mental na APS
Nas vésperas do Dia Nacional da Saúde (05/08), falaremos sobre a importância da saúde mental na Atenção Primária.
A abordagem de saúde mental no cotidiano da clínica de atenção primária é complexa e desafiadora. Esse desafio se dá em muitas vias diferentes. O primeiro e mais óbvio desafio é a exata compreensão sobre o que é saúde mental.
Além disso, ferramentas de abordagem de saúde mental com evidência podem ser pouco conhecidas da maioria dos profissionais de atenção primária. Por outro lado, o desafio de adotar perspectivas positivas de saúde, pouco focadas em abordagens nosológicas, reforça esse contexto.
O assunto não é novo na literatura. Em 2012, Benzer e colaboradores conduziram uma pesquisa qualitativa fundamentada em dados para compreender barreiras e facilitadores para implementação de cuidado em saúde mental em cenários de atenção primária.
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Para construir um modelo teórico de barreiras e facilitadores, os pesquisadores entrevistaram 65 profissionais de 16 diferentes serviços. Entre os entrevistados, quase a metade eram líderes de serviços, fossem eles médicos, psicólogos ou psiquiatras. Os pesquisadores utilizaram entrevistas semiestruturadas para coleta de dados, análise de conteúdo e triangulação para avaliação do material coletado.
Entre os resultados os pesquisadores definiram as seguintes categorias de conteúdo nas respostas alocadas na tabela 1:
Categoria | Definição |
Liderança | Liderança provê ou não direcionamento, coordenação entre diferentes serviços, busca recursos necessários, toma decisões em tempo oportuno e comunica com equipe assistencial. |
Recursos | Falta de espaço físico, distâncias físicas, insuficiência de profissionais para provimento de um cuidado coordenado de saúde mental, falta de habilidades técnicas para qualificação da equipe, falta de treinamento para cuidado em saúde mental. |
Fluxos e processos de trabalho | Escolhas intencionais sobre o funcionamento do serviços, divisão de tarefas entre profissionais, escolhas de funções formais e informais, gestão de agenda e modelos de agendamento (ex.: demandas espontâneas, acesso avançado, etc.). |
Processos Administrativos | Percepção de diferenças de cuidado entre atenção primária e serviços especializados, sobrecarga profissional, falta de apoio matricial, fragmentação de informação clínica. |
Comunicação | Comunicação interpessoal e entre serviços de saúde mental e atenção primária. |
Complexidade dos pacientes | Desafios de pacientes com condições mentais graves ou com comorbidades clínicas, pacientes com altas necessidades de saúde ou não conformidades no cuidado. |
Embora a configuração do sistema de saúde americano seja bastante distinta do modelo brasileiro, as dores são bastante semelhantes em muitos casos. Além disso, boa parte dos serviços é construída com um olhar para transtornos mentais e não para pessoas que vivem com eles, bem como para cuidar de doenças e não para promover saúde. Esse é o panorama descrito por Hirdes e Kochenborger em seu artigo sobre saúde mental na atenção primária, publicado em 2015. As autoras destacam o quanto o cenário de atenção primária se adequa ao cuidado de saúde mental, mas o quanto é desafiador fazê-lo com qualidade.
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Ao se deslocar o olhar da perspectiva de profissionais para pessoas que utilizam os serviços de saúde, percebemos encontros e desencontros nas percepções. Ross e colaboradores buscaram também compreender barreiras e facilitadores para cuidados de pessoas vivendo com transtornos mentais ou uso nocivo de substâncias. A equipe de pesquisa conduziu um estudo participativo com 85 adultos autoidentificados como vivendo com transtornos mentais graves ou uso nocivo de substâncias e 17 profissionais de saúde de diferentes áreas de atuação.
Os pesquisadores utilizaram entrevistas semiestruturadas para coleta de dados. A equipe de pesquisa identificou muitas barreiras relativas ao acesso das pessoas aos serviços de saúde, além disso os usuários dos sistemas de saúde relatam pontos de dificuldade relativas à escolaridade e renda para o acesso aos serviços, sendo especialmente difícil o agendamento de consultas e um autogerenciamento da saúde.
Se por um lado as evidências para compreensão das barreiras e facilitadores do cuidado em saúde mental vão se tornando conhecidos, por outro a construção de soluções ainda é tímida. Um grupo de pesquisa canadense tentou selecionar algumas dessas soluções baseadas em evidência e buscando propostas de custo-efetividade para melhoria do cuidado de saúde mental na APS.
O trabalho publicado em 2020 aponta especial preocupação com populações jovens e de localidades de difícil acesso, realidade que, apesar da disparidade socioeconômica com o Brasil, é em parte compartilhada com o cenário nacional.
O principal foco de resultados da pesquisa foram soluções voltadas para ampliação do acesso aos serviços de saúde. O principal modelo custo-efetivo foram os cuidados de saúde mental comunitários (modelos fortemente baseados em APS). O modelo canadense revelou que apenas 1.5% das pessoas vivendo com transtornos metais precisam de cuidados com especialidade focal, sendo que mais de 80% das pessoas tem seus problemas integralmente resolvidos na APS.
Os pesquisadores identificaram que a inclusão de psicoterapia como serviço ofertado na APS reduz entre 20 e 30% dos custos médicos. O mesmo impacto positivo acontece com o treinamento profissional de equipes médicas de APS para intervenções precoces.
A maioria dos problemas de saúde mental tem início durante a adolescência e por essa razão intervenções comunitárias foçadas nessa fase do ciclo de vida possuem um alto retorno sobre o investimento, sendo consideradas padrão ouro para promoção de saúde mental. Os modelos de gestão da Austrália e Reino Unido ampliaram o acesso à psicoterapia para a população e reforçam a evidência do sucesso Canadense em que, para cada dólar investido em psicoterapia, há economia de dois dólares para a sociedade.
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Outra modalidade de investimento custo-efetiva é a construção de serviços de saúde digitais para saúde metal. Essa é uma modalidade de intervenção que ganhou força com a pandemia no novo coronavírus e tem alcançado bons resultados, especialmente para gerações nativas digitais. Uma evidência robusta de efetividade foram treinamentos de autocuidado com módulos on-line e intervenções presenciais. A solução é interessante e possui um bom potencial de escalabilidade, embora no Brasil ainda seja um grande desafio o acesso à internet em regiões de maior vulnerabilidade.
Embora o panorama brasileiro seja complexo em diferentes camadas, a identificação de barreiras comuns com outros serviços e modelos assistenciais bem como de soluções propostas com evidência de resultados aponta direções para soluções customizadas para a realidade do país. Além disso, diferentes desafios regionais podem transformar a ordem de prioridades.
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