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Medicina de Emergência22 maio 2019

Torniquete: uma ferramenta salvadora de vidas

O uso de torniquete mostrou-se efetivo na realização de hemostasia temporária e redução de mortalidade por lesões com risco mínimo de complicações. Saiba mais:

Por Eugênio Franco

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A despeito da trágica realidade das guerras pelo mundo, é inegável que tais eventos trouxeram grande avanço na medicina e uma vasta base de dados para pesquisa que dificilmente seria obtida em ambiente civil ou mesmo em ambiente militar em tempos de paz. Em respeito às vidas perdidas, é nosso dever utilizar todo o conhecimento adquirido na prevenção de novas mortes.

Um exemplo de ferramenta que teve grande parte de sua evolução (com diversas fases de amor e ódio) construída em episódios de guerra é o torniquete.

Torniquetes são dispositivos de contenção de hemorragias que são aplicados nos membros (inferiores e superiores) geralmente para conter lesões de extremidades exsanguinantes. O primeiro relato data de 1674, durante a guerra franco-holandesa, onde teria sido utilizado em campo de batalha por Morel.1 Desde então, ao longo da história, (e por muitas guerras – primeira e segundas guerras mundiais, Coreia, Vietnã e a Guerra Civil espanhola são apenas alguns exemplos) seu uso passou por muitos debates até chegar aos dias de hoje, onde temos evidências científicas para embasar condutas.

O uso de torniquetes mostrou-se efetivo na realização de hemostasia temporária e redução de mortalidade por lesões de extremidades com risco mínimo de complicações relacionadas diretamente a seu uso em campo de batalha.3  

O atentado terrorista ocorrido durante a maratona de Boston (2013) foi o primeiro grande ataque terrorista da era moderna nos EUA onde houve diversas lesões graves (semelhante a lesões de guerra) em extremidades de membros inferiores.Por conta disso, foi possível avaliar sua eficácia também em ambiente civil pré-hospitalar. Os resultados foram animadores. Em ambiente civil pré-hospitalar os resultados foram compatíveis com os dados extraídos das pesquisas realizadas em ambiente militar.

Leia maisControle o sangramento! Segundos fazem a diferença

Ou seja, eficácia na contenção de hemorragias com pequena chance de complicações relacionadas diretamente ao seu uso. Foi evidenciado o uso de torniquete no ambiente civil pré-hospitalar como fator isolado de redução de seis vezes na mortalidade nos pacientes vítimas de lesões de extremidades com sangramento ameaçador à vida.5  

Enquanto em países da América do Norte e em vários países europeus há atualmente uma tentativa de informar a importância da contenção de sangramentos com o uso de torniquetes e de garantir o acesso em massa a treinamentos e materiais para controle de hemorragias; ao ponto de muitas vezes, em locais onde há Desfibrilador Externo Automático (DEA) disponível, haver também um kit para casos de trauma. e nos Estados Unidos existir,

Ainda temos muito a avançar no Brasil quando o assunto é conscientização da população (leiga e de profissionais da saúde) sobre a importância do uso de torniquetes e qual a melhor maneira de aplicá-los. Nos Estados Unidos, por exemplo, há um Dia Nacional de Controle do Sangramento (National stop the bleed day em tradução livre), criado em 23 de maio de 2018.

torniquete

Pontos a serem considerados sobre torniquetes

O uso do torniquete é prejudicial pois causa lesão e perda de membros?

Não. É importante frisar que em uma época em que o tempo resposta de atendimento aos traumas de extremidade e o tempo para evacuação de soldados feridos eram prolongados, em eventos mais recentes (guerras do Iraque e Afeganistão) o número de lesões e amputações pelo uso de torniquetes caiu muito devido ao acesso de todos os membros das forças armadas dos EUA a torniquetes táticos e treinamento de como utilizá-los e às remoções rápidas por helicóptero de militares feridos.

Os dados evidenciam um número muito baixo de complicações (2% de todas as complicações dos pacientes traumatizados que usaram torniquete) e muitas vezes não se pode determinar se essas complicações foram causadas pelo torniquete ou pelo trauma inicial.6   Pode-se utilizar um torniquete por até duas horas sem medo de complicações.7   

Um bom torniquete pode ser improvisado com quase qualquer material?

Não. Apesar de amplamente difundida, essa informação não é verdadeira. Torniquetes improvisados tendem a criar o chamado torniquete venoso, causando a falsa impressão de que a hemorragia foi contida e podendo resultar em um sangramento paradoxal que leva a sangramentos maiores do que se não fosse aplicado nenhum torniquete.8   

O uso de torniquetes não é tão difundido por que o treinamento é difícil?

Não. Com tantas informações erradas disponíveis sobre o assunto, poderíamos até pensar que sim. Porém, alguns estudos mostram que mesmo treinamentos mínimos (menos de um minuto de duração) fazem com que as pessoas treinadas sejam eficientes em aplicar corretamente um torniquete.9      

Como deve ser um torniquete para que seja eficaz?

Como já vimos, o uso de torniquetes improvisados é fortemente desaconselhado. Um bom torniquete (assim são feitos os produtos fabricados para este fim) tem pelo menos 4 cm de largura e cerca de 95 cm quando totalmente aberto (esse comprimento serve para garantir que o torniquete dê pelo menos mais do que uma volta completa no membro), garantindo sua correta fixação.

Como devo aplicar o torniquete?

  • Utilize o torniquete para conter hemorragias em membros sempre que a compressão direta não puder ser realizada ou não for efetiva.
  • O torniquete deve ser aplicado no membro afetado cerca de 5 a 7 cm em posição proximal à lesão.
  • Não aplicar sobre articulações. Caso a lesão esteja próxima a um articulação, posicione o torniquete acima da articulação.
  • Aperte o torniquete até que o sangramento pare completamente.
  • A correta aplicação do torniquete dói bastante. Avise isso ao paciente.
  • Pode ser colocado por cima das roupas. (Mas tenha cuidado para não aplicar em cima de objetos dentro dos bolsos da vítima, por exemplo).
  • Caso um torniquete não seja suficiente para interromper completamente o sangramento, pode-se utilizar mais um torniquete em posição proximal ao primeiro.
  • O torniquete pode ser aplicado em outras pessoas ou a própria vítima pode aplicar em si mesma.
  • Registre o horário de aplicação no torniquete.
  • Não afrouxe ou retire o torniquete (Somente deve ser retirado no momento em que possa ser feita a correção da lesão).

Utilize e multiplique essas informações. A única coisa mais trágica que uma morte é uma morte que poderia ter sido evitada.

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Referências:

  1. Welling DR, McKay PL, Rasmussen TE, Rich NM. A brief history of the tourniquet. J Vasc Surg 2012;55:286e290.
  2. King DR, Larentzakis A, Ramly EP. Tourniquet use at the boston marathon bombing: lost in translation. J Trauma Acute Care Surg 2015;78:5949.
  3. Kotwal RS, Montgomery HR, Kotwal BM, et al. Eliminating preventable death on the battlefield. Arch Surg 2011;146:1350e1358.
  4. KapurGB, Hutson HR, Davis MA, Rice PL. The United States twenty-year experience with bombing incidents: implications for terrorism preparedness and medical response. J Trauma. 2005;59(6):1436Y1444.
  5. Teixeira PGR, Brown CVR, Emigh B, Long M, Foreman M, Eastridge B, Gale S, Truitt MS, Dissanaike S, Duane T, et al. Civilian Prehospital tourniquet use is associated with improved survival in patients with peripheral vascular injury. J Am Coll Surg. 2018;226(5):769–776.e1.
  6. Kragh Jr JF, Walters TJ, Baer DG, Fox CJ, Wade CE, Salinas J, et al. Survival with emergency tourniquet use to stop bleeding in major limb trauma. Ann Surg 2009;249(1):1–7.
  7. Bulger EM, Snyder D, Schoelles K, Gotschall C, Dawson D, Lang E, et al. An evidence-based prehospital guideline for external hemorrhage control: American College of Surgeons Committee on trauma. Prehosp Emerg Care 2014;18(2):163–73.
  8. Kragh JF Jr., O’Neill ML, Walters TJ, Dubick MA, Baer DG, Wade CE, Holcomb JB, Blackbourne LH. Minor morbidity with emergency tourniquet use to stop bleeding in severe limb trauma: research, history, and reconciling advocates and abolitionists. Mil Med. 2011;176(7):817Y823.
  9. Wall PL, Welander JD, Singh A, Sidwell RA, Buising CM. Stretch and wrap style tourniquet effectiveness with minimal training. Mil Med. 2012;177(11):1366Y1373.
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