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Infectologia10 março 2022

Os 100 anos da BCG

A BCG foi primeiramente aplicada em 1921, há pouco mais de 100 anos, e representou um efeito protetor importante nos quadros de tuberculose.

Por Rafael Duarte

Uma vacina com descrição de baixa eficácia e heterogeneidade na resposta imune comprovada, diversos efeitos adversos inclusive infecção em sítio de inoculação ou infecção disseminada pós-vacinal, e proteção, quando efetiva, apenas contra os quadros graves da doença: Qual vacina seria essa? A tradicional vacina contendo o Bacillus de  Calmette-Guérin, ou também conhecida como BCG.  

A BCG foi primeiramente aplicada em 1921, há pouco mais de 100 anos, e representou um efeito protetor importante nos quadros de tuberculose (TB). Apesar dos tratamentos farmacológicos disponíveis atualmente e a cobertura vacinal ampla com o uso da vacina BCG, a tuberculose segue como um problema de Saúde Pública global, incluindo com a ocorrência de regiões altamente endêmicas da doença. 

bcg

A tuberculose no mundo 

Estima-se que ¼ da população mundial está infectada, de forma latente, com Mycobacterium tuberculosis (Mtb), dentre os infectados, 5 a 10% vão evoluir para a doença tuberculose. Anualmente, estima-se que cerca de dez milhões de pessoas apresentem o quadro da doença. Em 2019, aproximadamente 1,2 milhões de pessoas foram a óbito devido a essa patologia, com um adicional de 208.000 mortes relacionadas à tuberculose entre indivíduos portadores do vírus da imunodeficiência adquirida (HIV). Outros fatores de risco para o desenvolvimento da TB incluem desnutrição, abuso de álcool, tabagismo e diabetes. Cerca de 95% das mortes relacionadas à TB ocorrem em países em desenvolvimento. A pandemia de covid-19 significativamente alterou todos os avanços e progressos nos programas de combate a TB.  

A doença TB 

A exposição ao Mtb pode resultar na erradicação do patógeno logo após o contato com o indivíduo, ou no processo de infecção quando o bacilo da tuberculose ultrapassa as barreiras naturais e sobrevive a imunidade inata do hospedeiro, com infecção inicial nos pulmões. A infecção assintomática, não contagiosa, geralmente não pode ser diagnosticada diretamente mas pode ser detectada por avaliação da resposta imune celular aos antígenos de Mtb através do teste tuberculínico (prova tuberculínica ou PPD) ou do ensaio interferon gamma release assay (detecção da liberação de interferon gama, IGRA). A tuberculose infecção pode persistir por décadas sem alterações, e recebe a denominação de tuberculose latente. O curso natural da TB em uma proporção dos infectados (5 a 10%) e geralmente com maior risco de nos dois primeiros anos após a infecção inicial, inclui a evolução para a tuberculose ativa (doença clínica).  O termo TB subclínica pode ser utilizado para descrever indivíduos assintomáticos mas com resultados positivos em exames microbiológicos ou radiológicos. Tais indivíduos comumente evoluem para o fenótipo sintomático e contagioso (tuberculose ativa) em quadros pulmonares e/ou extra-pulmonares, especialmente linfonodos, ossos, trato gastrointestinal, trato genitourinário, meninges, peritônio, pericárdio ou vários órgãos ou sistemas simultaneamente (TB disseminada).  

A vacinação com a BCG 

A BCG consiste em uma vacina viva atenuada da espécie Mycobacterium bovis. Em 1908, os pesquisadores Albert Calmette e Camille Guérin desenvolveram o cultivo laboratorial de uma cepa virulenta dessa espécie em féculas de batata impregnadas com bile e glicerina, e observaram a transformação fenotípica das colônias bacterianas após passagens (repiques) da cultura. Entre 1908 a 1920, Calmette e Guérin realizaram 230 passagens em culturas da cepa bacteriana e obtiveram uma variante atenuada, sem potencial para o desenvolvimento da doença em cobaias, coelhos, bovinos e cavalos. Em 1921, essa preparação da variante avirulenta recebe o nome de BCG foi inicialmente administrada em uma criança por via oral.

Durante três anos subsequentes, a BCG foi administrada por ingestão imediatamente após o nascimento a 317 crianças com familiares com ou sem TB. Devido a ausência de efeitos adversos até julho de 1924, a BCG passa a ser distribuída para outros laboratórios em todo o mundo, com novas passagens por culturas e métodos de estocagem gerando novas variantes, e atualiza-se a estratégia para a administração intradérmica, em alguns países por subcutânea. Após a Segunda Guerra Mundial, cerca de 85% dos 223 países assistidos pela Organização Mundial de Saúde incluíram a vacinação pela BCG no programa nacional de imunizações, e outros países suspenderam a obrigatoriedade devido a redução da incidência da TB ou nunca recomendaram para a população em geral. Em 2019, 147 países registraram dados sobre a cobertura vacinal com a BCG, com índices superiores a 90% dos neonatos. Até o momento, seguem os estudos sobre a melhor via de administração da BCG com avaliação de administração em mucosas (oral, nasal, pulmonar por aerossolização), assim como a estratégia de revacinação (boost), apesar dos estudos iniciais não indicarem adição no efeito protetor.  

Mas, afinal, por que a tuberculose continua como um problema global de saúde pública mesmo com mais de 100 anos desde a introdução da vacinação com a BCG? Alguns aspectos importantes são descritos abaixo sobre esses questionamentos:  

  • A eficácia da BCG está em cerca de 19% para a proteção contra a infecção por Mtb e progressão para a doença ativa, alguns estudos sugerem níveis superiores mas não maiores que 80%; 
  • Observa-se que a proteção gerada pela vacinação com BCG está direcionada com as formas graves da doença na infância (até 10 anos após a administração): TB miliar disseminada e meningite tuberculosa; e não há efeitos significativos sobre a evolução das outras formas da doença;
  • A eficácia da vacinação é amplamente variável influenciada por múltiplos fatores como a infecção por micobactérias não-tuberculosas (MNTs), idade vacinal, infecção por HIV, sistema imune do hospedeiro e fatores genéticos (exemplo: polimorfismo hipofuncional de TLR1, TLR6 e TOLLIP), a estirpe vacinal de BCG, variante de Mtb e grau de exposição, e outros.  Tais variações tornam a resposta imune vacinal não previsível; 
  • A presença de granuloma após a vacinação intradérmica pode representar a indução de resposta imunológica ao Mtb. A não formação do granuloma sugere ausência de resposta; 
  • Dentre os vacinados, observam-se diversos efeitos adversos, incluindo febre, astenia, mialgias, lesão local ulcerada, infecção disseminada e outros.

Leia também: Indicações da vacina BCG podem ser mais um motivo de comemoração

Como podemos observar, a BCG também passou por diversas adaptações e aprimoramentos, e ainda continua em estudo sobre formas ou estratégias para elevar a homogeneidade e eficácia da resposta imune à Mtb. Alguns países, como o próprio Brasil experimentaram a suspensão temporária da vacinação com BCG resultando em epidemias de quadros graves de TB em crianças não vacinadas, o que condicionou o retorno à obrigatoriedade desse composto no programa nacional de vacinação.  

Maiores detalhes sobre a vacinação com BCG e os diversos aspectos que justificam sua continuidade em programas de imunização podem ser vistos nas referências abaixo.

Referências bibliográficas:

  • Foster M, Hill PC, Setiabudiawan TP, Koeken VACM, Alisjahbana B, van Crevel R. BCG-induced protection against Mycobacterium tuberculosis infection: Evidence, mechanisms, and implications for next-generation vaccines. Immunol Rev. 2021 May;301(1):122-144. 
  • Lobo N, Brooks NA, Zlotta AR, Cirillo JD, Boorjian S, Black PC, Meeks JJ, Bivalacqua TJ, Gontero P, Steinberg GD, McConkey D, Babjuk M, Alfred Witjes J, Kamat AM. 100 years of Bacillus Calmette-Guérin immunotherapy: from cattle to COVID-19. Nat Rev Urol. 2021 Oct;18(10):611-622. 
  • Singh AK, Netea MG, Bishai WR. BCG turns 100: its nontraditional uses against viruses, cancer, and immunologic diseases. J Clin Invest. 2021 Jun 1;131(11):e148291. 
  • Setiabudiawan, TP, Reurink, RK, Hill, PC, Netea, MG, van Crevel,R, Koeken VACM. Protection against tuberculosis by Bacillus Calmette-Gue´rin (BCG) vaccination: A historical perspective. CellPress, Med Perspective 3, 6–24, January 14, 2022.  
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