Guia essencial para o tratamento das infecções fúngicas hospitalares
As infecções fúngicas invasivas estão relacionadas a grande morbidade e mortalidade, podendo ser consideradas como infecções oportunistas potencialmente fatais. Frequentemente estão associadas a condições de imunossupressão e de assistência à saúde,1, mas sua ocorrência vem sendo reconhecida, cada vez mais, em outras situações, especialmente as que demandam cuidados intensivos e internações prolongadas.2
A incidência de infecções fúngicas em ambientes hospitalares vêm aumentando nos últimos anos, assim como a população de indivíduos com fatores de risco para seu desenvolvimento.1,2 As infecções profundas podem acometer tecido subcutâneo, mucosas e órgãos internos, de forma localizada ou sistêmica.1 No contexto hospitalar, Candida spp. é o agente etiológico mais frequente, sendo seguida por Aspergillus.1,2
Estima-se que a candidemia seja a terceira à quarta infecção de corrente sanguínea mais comum, principalmente dentro de unidades de terapia intensiva (UTI).2 A taxa de mortalidade hospitalar de infecções por Candida spp. é estimada em 50% a 71%,1 o que mostra a elevada letalidade da condição.
Entre os fatores de risco identificados para fungemia, encontram-se neutropenia, uso de antibióticos de amplo espectro, transplante de órgãos sólidos ou de medula óssea, diabetes mellitus, queimaduras graves, prematuridade, nutrição parenteral, realização de procedimento cirúrgico (especialmente cirurgia abdominal) e presença de dispositivos intravenosos. Para candidemia, outros fatores identificados são disfunção renal e colonização por Candida spp. em múltiplos sítios, comuns em pacientes críticos internados em UTI. Os quadros de aspergilose, por sua vez, ocorrem tipicamente em pacientes com condições claras de imunossupressão, tendo como fatores de risco neutropenia prolongada, desenvolvimento de doença do enxerto versus hospedeiro, uso de agentes imunossupressores ou corticoides e doenças que cursam com disfunção imune, como a doença granulomatosa crônica.2
Embora C. albicans seja a espécie mais comumente isolada, o papel de espécies não albicans, como C. parapsilosis, C. glabrata e C. auris, vem sendo reconhecido como crescente. Essa mudança epidemiológica é importante para a escolha terapêutica, uma vez que a resistência aos agentes azólicos é mais prevalente entre as espécies não albicans em comparação com isolados de C. albicans.1,2
Pela alta letalidade observada, o reconhecimento precoce de infecções fúngicas profundas é importante para que a terapia adequada seja instituída. Algumas ferramentas clínicas, como o Candida score, foram validadas como forma de identificar pacientes com alto risco de infecção invasiva por cândida e aqueles que teriam benefício com terapia antifúngica precoce.3
O padrão-ouro para o diagnóstico é o isolamento de fungo em culturas. Entretanto, a sensibilidade desse método pode ser considerada subótima, variando de acordo com fatores como frequência de coleta de amostras e, para o caso de hemoculturas, o volume de sangue coletado. Durante um episódio de candidemia, o número de células fúngicas circulantes pode ser menor do que 1 UFC/mL, o que dificulta seu isolamento.4 Casos de carga fúngica muito baixa, candidemia intermitente, presença de coleções profundas persistentes após esterilização do sangue ou infecções resultantes de inoculação direta sem candidemia são situações em que hemoculturas podem ser negativas.5 Além disso, o tempo de crescimento de espécies fúngicas é maior do que o de espécies bacterianas (com uma mediana de tempo para positividade de 2-3 dias, podendo variar de 1 a mais de 7 dias), o que também pode ser um fator contribuinte para o relativo atraso no diagnóstico.4,5
Com o objetivo de melhorar a sensibilidade das hemoculturas como ferramenta diagnóstica de candidemia, algumas medidas são recomendadas: coleta de amostras seriadas (diariamente ou na presença de febre), uso de frascos de hemocultura para fungos com meios seletivos, quando disponíveis, coleta das amostras antes do início de terapia antifúngica, e coleta de volumes elevados de sangue, preferencialmente entre 40 mL a 60 mL de sangue por dia.4 A última recomendação pode se mostrar difícil em algumas populações, como pacientes hemodinamicamente instáveis, com anemia grave ou crianças, em que a possibilidade de se alcançar esses volumes de forma segura é limitada.
Para casos de candidíase invasiva sem candidemia, o diagnóstico é estabelecido por meio de culturas de locais estéreis ou por meio de exame histopatológico positivo. Na suspeita de doença fúngica, amostras citológicas e/ou de tecidos devem preferencialmente ser enviadas para laboratório de microbiologia para realização de microscopia e cultura, mas também para exame histopatológico com colorações específicas para fungos, como Grocott-Gomori ou ácido periódico de Schiff.4
Outras ferramentas diagnósticas estão disponíveis na prática clínica. Contudo, nem sempre estão disponíveis, podem ser de difícil interpretação fora de contextos específicos e apresentam baixa especificidade, não substituindo as culturas e sendo consideradas como adjuvantes. Os métodos mais utilizados e estudados são baseados na detecção de antígenos fúngicos ou de anticorpos direcionados contra eles. Pesquisa do antígeno manana de Candida spp. e do anticorpo antimanana, dosagem de β-D-glucana e CAGTA são exemplos encontrados na literatura. Técnicas moleculares também vem sendo estudadas, apresentando um ganho de sensibilidade em relação à cultura convencional. Entretanto, a performance dos testes desenvolvidos in-house é variável, e testes baseados nas técnicas de PCR não foram incorporados nos principais guidelines.4,5
Mesmo na disponibilidade de métodos diagnósticos auxiliares, o isolamento da espécie de Candida spp. tem implicações importantes para o manejo da infecção, uma vez que permite sua identificação – o que leva ao conhecimento de padrões de resistência intrínseca – e permite a realização de testes de suscetibilidade a antifúngicos – o que pode ajudar a identificar padrões de resistência adquirida.4 A maioria dos isolados de C. albicans permanece suscetível aos antifúngicos mais utilizados, porém resistência a azólicos em espécies não-albicans, como C. glabrata, vem tornando-se frequente.5
Devido à possibilidade de disseminação hematogênica, o rastreio de complicações e implantes à distância costuma ser recomendado. Nesse contexto, destacam-se o desenvolvimento de endoftalmite e endocardite. A incidência de acometimento ocular em casos de candidemia pode chegar a 16%, com possibilidade de evolução para doença grave e que pode levar à perda visual. Por esse motivo, recomenda-se a realização de exame de fundo de olho por um especialista em todos os casos de candidemia documentada ainda dentro da primeira semana de tratamento. Em pacientes neutropênicos com o diagnóstico de candidemia, é recomendada realização de fundoscopia na primeira semana após a recuperação da neutropenia, uma vez que os achados oftalmológicos geralmente são sutis enquanto há deficiência de neutrófilos.5
A presença de endocardite deve ser pesquisada por meio de ecocardiografia na presença de febre ou de hemoculturas persistentemente positivas apesar de terapia antifúngica, ou se houver desenvolvimento de sopros cardíacos novos, insuficiência cardíaca ou fenômenos embólicos. Cirurgia cardíaca valvar é a principal condição associada, mas outros fatores de risco, como uso de drogas injetáveis, quimioterapia, presença de dispositivos intravasculares por tempo prolongado e história prévia de endocardite bacteriana, também foram identificados.5
Duas intervenções são consideradas como os pilares para o manejo de quadros de doença invasiva por cândida: controle de foco e tratamento antifúngico sistêmico adequado e precoce. Controle de foco refere-se à eliminação do foco suspeito de infecção, o que pode envolver a retirada de dispositivos intravenosos, retirada de dispositivos protéticos e drenagem de coleções.4
Atualmente, os guidelines internacionais recomendam o uso de equinocandinas como primeira linha de tratamento para casos suspeitos ou confirmados de candidíase invasiva, incluindo no contexto de internação em UTI.4-7 Os três representantes disponíveis dessa classe de antifúngicos são anidulafungina, caspofungina e micafungina. As equinocandinas atuam interferindo com uma das enzimas responsáveis pela síntese da parede celular fúngica, possuindo uma alta atividade fungicida contra a maioria das espécies de cândida. Outras características atraentes das equinocandinas são seu perfil de segurança favorável e o baixo potencial de internações medicamentosas, além de alcançarem concentrações terapêuticas na maior parte dos locais de infecção, com exceção de olhos, sistema nervoso central e urina.4,6
Cada equinocandina apresenta suas especificidades, podendo ter probabilidades diferentes de alcançar alvos de farmacocinética e farmacodinâmica, especialmente em pacientes críticos.8 Além de atividade contra Candida spp. e Aspergillus spp., a caspofungina tem ação contra Pneumocystis jirovecii.9 Sofre metabolização no fígado, sendo a única equinocandina com recomendação de ajuste de dose em casos de disfunção hepática moderada ou grave.5 Seu uso necessita de administração de dose de ataque, com doses diárias de manutenção posteriormente. Interações importantes são com rifampicina, que pode reduzir os níveis séricos de caspofungina, e com tracolimus, que pode ter seu nível sérico reduzido, quando utilizadas concomitantemente com o antifúngico.9
A anidulafungina sofre metabolização plasmática, não necessitando de ajuste de dose na presença de disfunção hepática. Em indivíduos acima de 140 kg, parece sofrer alterações em seu volume de distribuição, que pode resultar em diminuição de exposição em tecidos infectados. Nesses casos, recomenda-se aumento em 25% da dose recomendada. Assim como a caspofungina, deve-se administrar dose de ataque, seguida de doses de manutenção diárias. Em pacientes com obesidade, o ajuste de dose deve ser calculado tanto para a dose de ataque quanto para as doses subsequentes.9
Micafungina é a única equinocandina que não necessita de dose de ataque, mantendo a característica da classe de administração uma vez por dia. Pode ser mantida em temperatura ambiente por até 24h, desde que protegida contra a luz. As outras equinocandinas devem ser mantidas sob refrigeração comum (2 a 8°C) e caspofungina pode ser mantida em temperaturas de até 25°C por 24h.9
Todas as equinocandinas podem ser utilizadas em adultos e crianças e não precisam de ajuste na presença de disfunção renal. Na população pediátrica, anidulafungina está aprovada para uso a partir de 1 mês de idade.5,9-12
Uma vez estabelecida a terapia, recomenda-se a coleta de hemoculturas de controle a cada 24 a 48h com o objetivo de determinar o momento em que há erradicação de candidemia. Para os casos de candidemia não complicada, isto é, sem evidências de implantes à distância, o tempo de tratamento recomendado é de 2 semanas a partir da primeira hemocultura negativa e da resolução de sintomas atribuídos à infecção.5 Para pacientes que estejam estáveis clinicamente, sem evidências de infecção persistente e em que haja sensibilidade comprovada, recomenda-se a troca de terapia de uma equinocandina para o fluconazol após 5 dias.4,6,7
Portanto, percebe-se que as infecções fúngicas, especialmente as causadas por Candida spp., são uma ameaça crescente no contexto de infecções hospitalares, uma vez que estão associadas com uma grande possibilidade de óbito. O rápido reconhecimento, o controle de foco e o início precoce da terapia adequada são pontos essenciais para o manejo da condição e a redução de mortalidade. Da mesma forma, a coordenação entre as diferentes especialidades (médicos intensivistas, infectologistas, oftalmologistas, ecocardiografistas etc.) e entre os diversos setores da unidade hospitalar (unidades de internação e de tratamento intensivo, laboratório de microbiologia, farmácia) pode contribuir para o desenvolvimento de uma adequada cadeia de cuidados desse perfil de pacientes.
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