Com o avanço da corrida para a vacinação anti-Covid-19 em diversos países do mundo, de forma a tentar controlar as continuidade dos numerosos casos de infecções pelo coronavírus SARS-CoV-2 e suas consequências, têm surgido nova polêmica — o passaporte vacinal.
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Passaporte de imunidade
Em 17 março de 2021, a Comissão Europeia aprovou a emissão de um documento inicialmente denominado “passaporte sanitário”, “passaporte covid”, ou “certificado verde digital”, atualmente renomeado como “Certificado Digital Covid da União Europeia (UE)”. A emissão do certificado será gratuita com autenticidade verificada por código QR e com programação para início em junho ou julho de 2021, com dados como data da vacinação, especificação da vacina e aprovação desta pelas instituições europeias. Tal documento provisório consiste em autorizar livre circulação em viagens no continente europeu para quem já foi vacinado contra a Covid-19, especialmente no período do verão. Tais regras vislumbram diminuir as restrições de viagens não essenciais pela Europa e a tentativa de restrição das exigências de quarentena, servindo como substituto para comprovantes de vacinação ou teste molecular de RT-PCR para a detecção de SARS-CoV-2 negativo. Porém, tal autorização ressalta diversas implicações, dentre elas:
1) Nas primeiras abordagens para a definição do passaporte covid, todas as vacinas disponíveis seriam aceitas, não somente aquelas aprovadas pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA). Porém, as declarações recentes da Sra. Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, restringem o passaporte covid somente para as vacinas autorizadas pela EMA [Ex. Pfizer – Alemanha e Suíça, Moderna – Estados Unidos (EUA), Janssen – EUA e AstraZeneca – Reino Unido e Suécia];
2) Discute-se ainda a possibilidade de proibição da entrada de cidadãos provenientes de diversos países que não tenham sido vacinados ou que tenham recebido vacinação por vacinas não autorizadas pela EMA, por exemplo a CoronaVac, imunizante predominantemente utilizado no Brasil, assim como os outros produtos da Sinovac Biotech e Sinopharm, empresas chinesas;
3) A vacinação pelos componentes Sputnik V (Rússia), CureVac (Alemanha) e Novavax (EUA) ainda estão sob avaliação e devem ficar restritos aos critérios de cada Estado-membro da UE;
4) Para os indivíduos que não recebam o certificado digital covid, serão requisitados comprovantes de resultados de teste molecular de RT-PCR negativo, ou comprovação de recuperação de Covid-19 nos últimos 180 dias com produção de anticorpos e pode ser mantida a exigência de quarentena obrigatória na chegada ao destino;
Na última atualização sobre os critérios para ser autorizado o certificado digital covid da UE, ampliou-se a possibilidade para registro também para residentes da UE que apresentem teste negativo à Covid-19 ou doença recente com produção de anticorpos.
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Tais medidas levantaram questionamentos sobre a situação discriminatória a ser criada pela formalização do certificado digital covid da UE, até mesmo entre países da Europa. Os pontos principais complicados relacionados à tal novidade incluem:
- Os estudos referentes à imunização, englobando durabilidade e eficácia da proteção imune, ausência do estado de portador/transmissibilidade de SARS-CoV-2, e até mesmo o número de doses necessário para a melhor estratégia vacinal, não são ainda conclusivos ou definitivos, e carecem de resultados consistentes;
- A exclusão das vacinas chinesas reforçam às desigualdades e discriminações existentes entre os países;
- A distribuição das vacinas autorizadas pela EMA não é uniforme na própria UE e ressalta a ausência de prioridade uniforme e igualitária entre os países componentes;
- As dificuldades de adesão a programas de vacinação, suplementos, compra, e/ou distribuição de vacina específicas prejudicam significativamente às medidas colaborativas pela melhor igualdade entre os países, especialmente em países em desenvolvimento;
- A vacinação é gratuita enquanto os testes de RT-PCR para a detecção de SARS-CoV-2 são pagos, e muitas vezes com valores não acessíveis, com necessidade de requisição de prescrição médica;
- O certificado digital covid compromete a privacidade do cidadão, assim como limita a mobilidade dos indivíduos que optam por não serem vacinados ou possuem restrições médicas à vacinação;
- As categorias populacionais marginalizadas apresentam menor probabilidade de serem vacinadas devido ao menor acesso ao serviço de saúde, crenças ou mesmo na credibilidade às medidas governamentais ou médicas;
- As companhias aéreas tendem a adotar o certificado digital covid para permitir o embarque de passageiros, o que pode limitar o transporte daqueles que não desejam ser vacinados ou não podem, resultando na instituição de quarentena obrigatória para os não vacinados;
- Há indícios e preocupações sobre a ampliação do uso do passaporte vacinal também para acesso a espaços públicos, áreas de trabalho, teatros, cinemas, shoppings, arenas desportivas, templos religiosos e até mesmo restringindo a empregabilidade;
- A não prioridade atual da vacinação em jovens e adultos jovens coloca esses grupos diretamente em desvantagem de mobilidade e deslocamento;
- Deve-se evitar que a desigualdade vacinal observada atualmente alimente a opressão sobre as populações específicas excluídas do acesso a vacinação até o momento;
Mensagem final
Tais aspectos comprometem substancialmente o sucesso das decisões europeias ou de quaisquer outros países que tendem a adotar medidas semelhantes do tipo passaporte vacinal. Por outro lado, as justificativas dos países-líderes europeus visam estimular significativamente a adesão aos programas de vacinação de forma a acelerar o controle da pandemia de Covid-19.
Alguns autores ressaltam e relembram que, atualmente, mais importante do que o passaporte vacinal é a busca pela equidade vacinal. No momento, o certificado digital Covid da UE ainda necessita ser aprovado formalmente pelo Conselho e pelo Parlamento Europeu.
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