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Hematologia5 abril 2024

Avaliação e gerenciamento do risco de sangramento antes de procedimentos invasivos

Neste artigo apresentaremos um resumo da diretriz da British Society for Haematology (BSH) para manejo do risco de sangramento
Por Felipe Mesquita

Este guideline foi desenvolvido no intuito de orientar os profissionais quanto à adequada solicitação de testes laboratoriais e uso apropriado de hemocomponentes, evitando atrasos desnecessários em procedimentos terapêuticos considerados não cirúrgicos. Estas recomendações devem ser lidas em conjunto com as orientações quanto ao risco de sangramento associado a procedimentos de Radiologia Intervencionista (RI), brevemente expostos ao longo do nosso resumo. As recomendações são predominantemente baseadas em evidências de pacientes adultos e, portanto, podem não ser aplicáveis a neonatos ou crianças muito pequenas. 

risco de sangramento antes de procedimentos invasivos

História clínica direcionada ao risco de sangramento 

É fortemente recomendado que uma entrevista clínica estruturada para avaliação de risco de eventos hemorrágicos, ou detecção de eventos na história patológica pregressa, seja desenvolvida.  

Um questionário baseado em consenso de especialistas, o HEMSTOP (Hematoma, hEmorragia, Menorragia, Cirurgia, Extração dentária, Obstetrícia, Pais), foi desenvolvido para se avaliar o risco de sangramento pré-operatório. Diversos autores concluíram que a Ferramenta de Avaliação de Sangramento (BAT – do inglês Blood Assessment Tool) da Sociedade Internacional de Trombose e Hemostasia (ISTH), no contexto pré-operatório, não diferenciava os pacientes quanto ao diagnóstico laboratorial de discrasias sanguíneas.

Um escore HEMSTOP de 2 ou mais teve uma especificidade de 98,6% (intervalo de confiança de 95% [IC], 92,3% a 100%) e uma sensibilidade de 89,5% para pacientes que possam requerer precauções hemostáticas devido a um risco de sangramento elevado. Com um escore HEMSTOP < 2, o valor preditivo negativo se aproxima de 99%, basicamente descartando um risco de sangramento relacionado ao paciente que exija precauções especiais. Infelizmente, ainda não há ampla validação prospectiva desta ferramenta na literatura. Um escore positivo não necessariamente indica um distúrbio de sangramento, com um valor preditivo positivo estimado de 39%.  

A ausência de sangramentos significativos apesar de intervenções cirúrgicas ou procedimentos invasivos anteriores (incluindo-se extrações dentárias) sugere que um distúrbio de sangramento subjacente significativo seja improvável. 

Perguntas Pontuação 
Você já consultou um médico ou recebeu tratamento para sangramentos prolongados ou incomuns (como sangramentos nasais, ferimentos leves)? 01 
Você apresenta hematomas/equimoses maiores que 2 cm sem trauma ou hematomas graves após traumas leves? 01 
Após a extração de um dente, você já experimentou sangramento prolongado que exigiu consulta médica ou odontológica? 01 
Você já teve sangramento excessivo durante ou após uma cirurgia? 01 
Há alguém em sua família que sofra de uma doença de coagulação (como hemofilia e doença de von Willebrand)? 01 
Você já consultou um médico ou recebeu tratamento para períodos menstruais intensos ou prolongados (pílula contraceptiva, suplementos de ferro etc.)? 01 
Você teve sangramento prolongado ou excessivo após o parto? Parte superior do formulário 

 

01 

História medicamentosa 

Apesar do baixo nível de evidência acerca das recomendações com relação à interrupção ou manutenção do uso de antiagregantes plaquetários e anticoagulantes, é razoável assumir algum risco trombótico para os pacientes ao interromper anticoagulantes e agentes antiplaquetários, embora provavelmente seja < 1% na maioria das situações.  

Não há evidências que apoiem a realização rotineira de testes laboratoriais em pacientes em uso de anticoagulantes ou agentes antiplaquetários antes de procedimentos, exceto verificar o RNI em pacientes em antagonistas da vitamina K. A avaliação rotineira dos níveis plasmáticos dos DOACs antes de procedimentos não é indicada ao se usar o protocolo PAUSE (desenvolvido para pacientes com fibrilação atrial que necessitam interrupção de apixabana, dabigatrana ou rivaroxabana para cirurgia ou procedimentos com alto risco de sangramento), e atualmente não há evidências que apoiem uma utilidade clínica destes testes no contexto avaliado.  

O uso da aspirina para profilaxia de evento cardiovascular e em baixas doses pode ser mantido para procedimentos não associados a um aumento no risco de sangramento, como biópsia pulmonar transbrônquica, biópsias percutâneas e biópsia renal. Até que mais dados clínicos estejam disponíveis, uma abordagem conservadora envolvendo os novos agentes antiplaquetários é recomendada (clopidogrel, prasugrel, ticagrelor), conforme pode ser visto na tabela abaixo.  

Para procedimentos de alto risco de sangramento, a interrupção é aconselhada conforme detalhado mais adiante. 

O protocolo PAUSE recomenda reiniciar os DOACs no dia seguinte a procedimentos de baixo risco de sangramento, enquanto recomenda um reinício tardio, após 2 a 3 dias, para procedimentos de alto risco. Não há dados de alta qualidade disponíveis para orientar o momento de reinício dos antiagregantes plaquetários, embora o mesmo cronograma possa ser aplicado. A varfarina pode ser reiniciada na noite do procedimento ou no dia seguinte, na dose habitual do paciente, atentando-se para o INR calculado de acordo com a dose semanal. 

Droga Procedimentos eletivos Procedimentos urgentes Observações 
Aspirina Interromper só se alto risco Continuar Corrige em até 4 dias 
Clopidogrel
Prasugrel
Ticagrelor 
Omitir 5-7 dias
Omitir 7 dias
Omitir 3-5 dias 
Considerar omitir 24 horas antes; transamin e transfusão de plaquetas podem ser aventados Se dupla-antiagregação, discutir com cardiologista 
Dipiridamol Omitir no dia do procedimento   
HBPM Profilático: Omitir 12 horas antes;
Terapêutico/Intermediário: omitir 24 horas antes. 
  
HNF Omitir por 4-6 horas Considerar protamina  
Argatroban
Bivalirudina 
Omitir ≥ 4 horas Não há agentes reversores  
Fondaparinux Profilático: omitir 1-2 dias; 

Terapêutico: omitir ≥ 3 dias; 

Não há agentes reversores  
Varfarina Omitir 5 dias Considerar reversão com vitamina K endovenosa se RNI alargado na avaliação ≥ 6 horas antes; Plasma Fresco Congelado se < 6 horasTerapia de ponte com HBPM deve ser considerada se houver alto risco para tromboembolismo (evento tromboembólico venoso recente < 3 meses, SAAF, RNI alargado > 2,5 e fibrilação atrial com CHADS2 ≥ 5. 
DOACs Omitir por 2 dias, exceto em procedimentos de baixo risco  Omitir por > 2 dias para pacientes em uso de dabigatrana com função renal prejudicada.  

 

Idarucizumabe pode ser usado para reversão de dabigatrana antes de procedimentos urgentes 

Definindo o risco de sangramento 

Foi proposto que procedimentos de alto risco sejam aqueles com um risco de sangramento major > 1,5%. Procedimentos também podem ser considerados de alto risco em virtude de o sangramento ser mais difícil de diagnosticar e tratar (por exemplo, sangramento retroperitoneal versus sangramento superficial de tecidos moles) ou com consequências mais significativas (por exemplo, sangramento secundário a intervenções na coluna vertebral). 

Baixo risco de sangramento Moderado/alto risco de sangramento 
Intervenções venosas básicas (incluindo confecção de fístula) — exclui intervenções intratorácicas Intervenções arteriais 6-7F 
Biópsias superficiais Embolizações (quimioembolização transarterial, embolização de artéria uterina, embolização de artéria prostática) 
Procedimentos musculoesqueléticos Intervenções de veia cava superior ou hemodiálise 
Trocas e inserções de catéter Shunt portossistêmico transjugular intra-hepático (TIPSS) 
 Extração de filtro de veia cava inferior (aderido), implante de catéter com tunelização em casos de obstrução venosa previamente identificados 
 Intervenções medulares espinhais 
 Punções de órgãos sólidos (fígado, baço, renal) 
 Drenagem ou punção de coleções/estruturas retroperitoneais ou intracavitárias profundas 

Testes de coagulação 

O guideline de avaliações laboratoriais pré-operatórias do Instituto Nacional de Excelência em Cuidados de Saúde (NICE), órgão britânico que orienta as ações em saúde do país contraindicou a realização rotineira de testes de coagulação antes de procedimentos cirúrgicos eletivos. A utilidade clínica do TAP e TTPa como ferramenta de triagem é extremamente limitada (ambos contidos no coagulograma II). Muitos autores concluíram que o TAP e o TTPA são fracos preditores de sangramento. Além disso, muitos dos distúrbios hemorrágicos mais comuns não estão associados a um perfil de coagulação anormal, incluindo aí distúrbios qualitativos plaquetários leves, Doença de Von Willebrand leve e até deficiências moderadas de fatores de coagulação clinicamente relevantes. 

Testes globais de hemostasia e função plaquetária para predizer sangramento antes de procedimentos invasivos 

A agregometria plaquetária por eletrodos múltiplos pode prever o risco de sangramento em pacientes submetidos a cirurgias cardíacas, reduzindo assim os requisitos de produtos sanguíneos de acordo com as melhores evidências disponíveis. Tais dados não devem ser extrapolados para outros tipos de cirurgias. 

Os dados sobre a tromboelastografia e a tromboelastometria rotacional (TEG/ROTEM) na previsão de sangramento ou no uso de produtos sanguíneos em pacientes sem doença hepática submetidos a procedimentos invasivos, e seu uso no ambiente de cuidados críticos, são limitados. O nível de evidência é baixo devido à heterogeneidade no desenho dos estudos, uso de diferentes grupos de controle, falta de padrões de referência e variabilidade nos desfechos escolhidos. No entanto, evidências emergentes sugerem um papel destas avaliações na redução do suporte transfusional perioperatório de pacientes com doença hepática e em pacientes na UTI, mesmo com testes de coagulação anormais, sendo a amplitude máxima do TEG um potencial preditor de sangramento. O tempo de coagulação avaliado pelo EXTEM da tromboelastometria tem sido utilizado para orientar a administração profilática de Plasma Fresco Congelado (PFC), com uma faixa normal (40–80 s) limitando seu uso. 

Procedimento Nível plaquetário (x109/L) Nível de evidência 
Cateter venoso central (tunelizado ou não), puncionado por profissional experiente e guiado por USG ≥ 20 1B 
Punção lombar ≥ 40 2C 
Cirurgia maior ≥ 50 1C 
Cirurgias menores ≥ 30 1C 
Inserção/remoção catéter epidural ≥ 80 2C 
Neurocirurgia ou cirurgia oftalmológica envolvendo compartimentos posteriores (ex: retina) ≥ 100 1C 
Biópsia hepática percutânea ≥ 50  2B 
Biópsia renal percutânea ≥ 50 2D 

Uso profilático de produtos plasmáticos antes de procedimentos invasivos 

Numerosos estudos demonstraram que não há benefício significativo em usar PFC profilático ou crioprecipitado antes de procedimentos em pacientes sem clínica de sangramento com testes de coagulação anormais, com evidências de que a transfusão de PFC na prática geralmente falha em corrigir valores anormais de razão PT/RNI.  

Manter um nível hemostático de fibrinogênio é um alvo terapêutico importante em pacientes com sangramento, particularmente no contexto perioperatório. Recomendações de consenso sugerem níveis de fibrinogênio de pelo menos 1,5–2,0 g/L para alcançar hemostasia em um paciente com sangramento grave ou submetido a um procedimento invasivo.

O fibrinogênio não deve ser rotineiramente medido em pacientes não criticamente enfermos antes de procedimentos e não há evidências para apoiar um nível específico de fibrinogênio no qual a reposição deve ser feita antes de um procedimento invasivo. No entanto, essas diretrizes recomendam que, em pacientes hospitalizados, a reposição deve ser considerada se o nível de fibrinogênio em um paciente criticamente enfermo for < 1,0 g/L. A reposição de fibrinogênio pode ser feita com crioprecipitado ou concentrado de fibrinogênio. 

Não há dados de alta qualidade quantificando o risco de sangramento de acordo com a contagem de plaquetas em procedimentos invasivos. Não há evidências fortes que indiquem dosagem quantitativa plaquetária antes de procedimentos de baixo risco de sangramento. Para procedimentos de alto risco de sangramento é razoável solicitar uma contagem de plaquetas atualizada de qualquer paciente que esteja em risco de trombocitopenia. Não há evidências de que as plaquetas devem ser > 50 x 109 para inserção de cateter central. Pacientes com distúrbios hematológicos que causam trombocitopenia são uma exceção a essas recomendações. 

Pacientes com doença hepática 

A insuficiência hepática aguda sobre crônica descompensada (ACLF – do inglês, Acute-on-Chronic Liver Failure), também pode resultar em hiperfibrinólise e coagulopatia com disfunção plaquetária que aumente o risco de sangramento. Uma contagem plaquetária  < 30 x 109/L, nível de fibrinogênio < 0,6 g/L e valores de TTPA > 100 segundos, parecem ser os mais fortes preditores independentes de início de sangramento grave, embora a hipertensão portal seja um fator de confusão a ser avaliado e talvez o mais importante de toda essa equação. Todas as intervenções invasivas, exceto as mais essenciais, devem ser evitadas nessas circunstâncias. 

O uso do RNI para determinar o risco de sangramento após procedimentos invasivos em pacientes com doença hepática crônica não é sustentado por evidências clínicas. Nenhum ensaio clínico estabeleceu limites precisos para o TAP e o TTPA nos quais os procedimentos invasivos podem ser considerados seguros. Muitos autores investigaram se o RNI > 1,5 e/ou plaquetas < 50 x 109/L estavam associados a um aumento do risco de sangramento em pacientes cirróticos. Não foram observados eventos de sangramento em pacientes submetidos a procedimentos de baixo risco, como paracentese. No entanto, houve um aumento do risco de sangramento após procedimentos de alto risco ou biópsia hepática, embora sem significância estatística em ensaios comparativos. 

As diretrizes contraindicam a correção rotineira da trombocitopenia e da coagulopatia em procedimentos de baixo risco de sangramento. Um número crescente de diretrizes internacionais desaconselha o uso profilático de PFC antes de procedimentos invasivos. Não há evidências que apoiem o uso de reposição de vitamina K em pacientes com cirrose. Continua sendo aceitável considerar a reposição de vitamina K endovenosa em altas doses em pacientes com um RNI aumentado secundário à deficiência de vitamina K, por exemplo, em doença hepática colestática, desnutrição ou uso prolongado de antibióticos.  

A terapia antifibrinolítica tem sido recomendada como uma opção em pacientes com sangramento pós-procedimento quando há evidência de hiperfibrinólise, mas as diretrizes não recomendam profilaxia rotineira com ácido tranexâmico antes de procedimentos. 

Não há estudos prospectivos avaliando o papel da transfusão de crioprecipitado/concentrados de fibrinogênio periprocedimento em pacientes cirróticos, e nenhuma evidência que apoie o uso de concentrado de complexo protrombínico (CCP), fator VIIa recombinante ou ácido tranexâmico no mesmo contexto.  

Para otimizar a formação de coágulos em doença hepática avançada, as diretrizes da American Gastroenterology Association recomendam limiares de transfusão durante sangramento ativo ou antes de procedimentos de alto risco de hematócrito ≥ 25%, contagem de plaquetas > 50 x 109/L e fibrinogênio > 1,2 g/L. 

O Paciente em Cuidados Críticos 

Procedimentos invasivos, incluindo a inserção de cateteres vasculares venosos (catéter central, swan-ganz), traqueostomia percutânea e toracocentese, são comuns em cuidados críticos, e dados observacionais sugerem que esses podem ser realizados com baixo risco de sangramento. A evidência de que o PFC previne complicações de sangramento periprocedimento em pacientes críticos sem sangramento ativo é insuficiente. O PFC pode estar associado a sobrecarga circulatória transfusional e ao aumento da susceptibilidade a infecções. As transfusões de plaquetas também são comumente administradas sem evidências que apoiem essa prática. Há falta de evidências para apoiar a transfusão profilática de plaquetas no ambiente periprocedimento. Uma transfusão de plaquetas pode ser considerada em pacientes com contagem de plaquetas < 30 x 109/L que necessitem de um cateter venoso central tunelizado.

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Referências bibliográficas

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