O termo “violência obstétrica” é alvo de muito debate acadêmico e ainda um conceito em construção e delimitação. Um dos temas de maior riqueza para esse entendimento é a diferença na percepção das experiências de parto sob o olhar de profissionais de saúde e de pacientes.
Desde a criação da Rede Cegonha, em 2011, no âmbito do SUS, e de programas federais como o Parto Adequado, de 2014, no âmbito da saúde suplementar, o debate sobre violência obstétrica tem crescido entre profissionais de saúde.
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Uma pesquisa do Projeto Nascer Brasil ocorrida entre 2011 e 2012 identificou uma forte intervenção durante os processos de parto, com realização de punção venosa em 70% dos casos, uso de mecanismos para aceleração do trabalho de parto como infusão de ocitocina em 40% dos casos estudados, adoção de posição litotômica em 92% dos casos, realização de episiotomia em 56% dos casos, entre outros aspectos de intervenções realizadas de modo rotineiro com baixo grau de evidência.
A maneira compulsória com que essas intervenções são realizadas sem decisão clínica compartilhada ou mesmo sem consentimento informado vão sutilmente ilustrando os desbalanços na relação de poder.
A percepção de pacientes
Em 2018, Almeida e colaboradores avaliaram narrativas de parturientes. Nesse estudo, 12 parturientes deram seus relatos de parto e a maior parte delas não conhecia o termo “violência obstétrica”. Todas foram atendidas pelo mesmo serviço de obstetrícia da região Nordeste do Brasil e as narrativas avaliadas conforme o método de Bardin.
Das 12, apenas três informaram saber o que era violência obstétrica e ainda afirmaram tê-la sofrido. Todas essas associavam o termo ao processo de contato ou relação entre o profissional de saúde e a parturiente. Nas narrativas contidas nesse estudo percebemos uma forte associação da qualidade da experiência do parto com a relação com a equipe assistencial.
Ademais, nem toda violência gera uma experiência explicitamente negativa. Violências “brandas” criam a atmosfera de normatização que autoriza socialmente a escalada de fenômenos que culminam em casos graves até a prática do hediondo.
A percepção de profissionais
Curiosamente, embora não seja exatamente congruente, a percepção de profissionais de saúde não é também divergente em relação à percepção das parturientes. O trabalho conduzido por Cardoso e colaboradores em 2015 e publicado no ano de 2017 avaliou o conteúdo do discurso de 20 profissionais de saúde de diferentes categorias profissionais em um mesmo serviço de saúde da região sudeste com especialização em obstetrícia.
Os profissionais foram convidados a relatar suas percepções acerca da violência obstétrica, desde o entendimento do conceito do termo até identificarem atos violentos em sua prática ou em seu serviço. Nesse estudo, 30% dos profissionais declararam nunca ter ouvido falar sobre o termo e apenas 20% tinham lido acerca do tema, os demais, embora não desconhecessem o termo, nunca tinham buscado nenhuma informação a respeito.
Nesse estudo é interesse destacar que a maioria dos profissionais de saúde identifica como atos de violência ruídos da comunicação ou atritos da relação entre profissionais de saúde e clientes do serviço de saúde. Isso é tão intenso que, em uma das narrativas, a violência é percebida como necessária ou como um recurso terapêutico. Esse entendimento é minimamente naturalizador do ato violento com potencial de também ser incentivador desses atos.
Caminhos de mudança
Empiricamente uma maneira de se entender essa dialética é perceber violência como o uso intencional de alguma forma de poder para constranger enquanto humanizar é o uso intencional desse poder para se centrar ou perceber o outro. Por outro lado, no campo micropolítico, profissionais e clientes serem apresentados a esses conceitos e conhecerem como isso remodela suas fronteiras relacionais é outra direção modificadora do nosso cenário atual.
Atos de violência que não são percebidos como experiências desagradáveis normalizam e autorizam atos de violência que culminarão em experiências desagradáveis. Informação acessível e de qualidade é uma ferramenta lida como potente e transformadora por todos os atores participantes do cenário de cuidado em saúde.
Debater o tema e introduzir conceitos associados a ele tem potencial de despertar autoconsciência e mudar padrões de comportamento lesivo nos serviços de saúde. Praticar a política nacional de humanização é uma via de mudança estrutural para o paradigma da violência na área da saúde.
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