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Ginecologia e Obstetrícia10 junho 2025

Experiências de cuidado e gaslighting em pacientes com distúrbios vulvovaginais

Artigo abordou a ocorrência de injustiça epistêmica, como o gaslighting, no contexto do cuidado ginecológico, com foco especial em mulheres com queixas de dor vulvovaginal
Por Ênio Luis Damaso

O artigo “Experiences of Care and Gaslighting in Patients With Vulvovaginal Disorders”, publicado recentemente na revista JAMA Network Open (maio de 2025), aborda a ocorrência de injustiça epistêmica no contexto do cuidado ginecológico, com foco especial em mulheres com queixas de dor vulvovaginal. Injustiça epistêmica refere-se à negação ou desvalorização do conhecimento de uma pessoa sobre sua própria experiência, algo comum em relações marcadas por assimetria de poder, como entre profissionais de saúde e pacientes.  

Uma forma particularmente prejudicial dessa injustiça é o “gaslighting” médico, no qual o relato do paciente é desconsiderado sem avaliação clínica adequada, levando-o a duvidar de sua própria percepção. Esse fenômeno já foi descrito em diversos contextos, como dor crônica, violência sexual, COVID longa e no campo da saúde reprodutiva, especialmente em obstetrícia e ginecologia. 

No entanto, há escassez de estudos que explorem a injustiça epistêmica em quadros específicos como a dor vulvovaginal, apesar das evidências de que pacientes — especialmente mulheres, pessoas transgênero e não-binárias — frequentemente enfrentam desconfiança, atrasos diagnósticos e sofrimento emocional nessas situações.  

Tendo em vista essa lacuna, o presente estudo teve como objetivo desenvolver um instrumento centrado na perspectiva do paciente para avaliar experiências de injustiça epistêmica, incluindo gaslighting, entre mulheres em busca de cuidado especializado para distúrbios vulvovaginais, além de analisar suas respostas quantitativas e qualitativas. 

Leia mais: ISSVD 2024: Congresso apresenta atualizações sobre Doenças Vulvovaginais

Metodologia 

Este foi um estudo transversal realizado com mulheres que procuraram atendimento em um centro especializado em distúrbios vulvovaginais entre agosto de 2023 e fevereiro de 2024.  

O objetivo foi entender se essas pacientes já haviam passado por situações de desvalorização de seus sintomas por profissionais de saúde — fenômeno conhecido como “gaslighting médico”.  

Para isso, foi elaborado um questionário específico, com base em relatos reais disponíveis no site da National Vulvodynia Association. O instrumento incluía perguntas objetivas (com escalas numéricas e respostas “sim ou não”) e espaços para que as pacientes descrevessem suas experiências com liberdade. 

O questionário foi revisado por associações de apoio a pacientes com dor vulvovaginal, e adaptado conforme suas sugestões. Antes da primeira consulta médica, as pacientes eram convidadas a responder, de forma voluntária, ao questionário via plataforma online. Além disso, foram coletadas informações como idade, raça/cor autodeclarada e respostas a escalas padronizadas de avaliação da função sexual, sofrimento emocional, ansiedade, depressão e percepção da dor. 

Na análise dos dados, as respostas quantitativas foram avaliadas por meio de estatísticas descritivas (médias, medianas, proporções) e correlações entre variáveis. Já os relatos escritos foram analisados com base em leitura detalhada e categorização temática, agrupando conteúdos semelhantes e destacando trechos mais representativos para ilustrar os diferentes tipos de experiências relatadas pelas pacientes. 

Principais achados 

O estudo analisou as respostas de 447 pacientes com queixas vulvovaginais, com idade média de 41,7 anos, que já haviam passado, em média, por mais de cinco profissionais antes de chegarem ao centro especializado. Os resultados revelam um cenário preocupante: menos da metade dos profissionais anteriores (43,5%) foram percebidos como acolhedores. Em contrapartida, cerca de 27% foram considerados depreciativos e 20% demonstraram não acreditar nas queixas das pacientes. 

As situações relatadas incluem condutas que desconsideram o sofrimento das pacientes. Mais da metade (52,8%) foi informada de que seus exames estavam “normais”, mesmo sentindo dor intensa.  

Muitas ouviram que “precisavam apenas relaxar” (41,6%), foram orientadas a consumir álcool (20,6%) ou encaminhadas à psiquiatria sem nenhuma abordagem médica prévia (20,6%). Além disso, 16,8% relataram sentir-se inseguras durante a consulta e 39,4% afirmaram ter sido feitas a se sentir “loucas” — comportamento que gerou maior sofrimento emocional, com nota média de 7,4 em uma escala de 0 a 10. 

Essas experiências afetaram diretamente a continuidade do cuidado: mais da metade das pacientes cogitou desistir do acompanhamento por não se sentir ouvida (52,8%) ou por achar que nenhum profissional poderia ajudá-las (56,8%). 

Nos relatos escritos, que somaram mais de mil contribuições, dois temas se destacaram: a frustração com a falta de preparo dos profissionais, especialmente em dor e saúde sexual feminina, e o desgaste emocional causado pela necessidade de consultar muitos médicos sem melhora.  

Pacientes que tiveram mais experiências acolhedoras relataram menor sofrimento e menos vontade de abandonar o cuidado. Já aquelas que passaram por comportamentos desdenhosos ou incrédulos tiveram mais sofrimento emocional. Mulheres mais velhas relataram menos episódios de desvalorização ao longo do cuidado. 

Conclusão 

Esse estudo mostrou que muitas pacientes com dor ou desconforto vulvovaginal relataram experiências negativas com profissionais de saúde, incluindo comportamentos que invalidaram seus sintomas ou as fizeram duvidar da própria percepção, o chamado gaslighting médico. Essas atitudes, ainda que muitas vezes não intencionais, causaram sofrimento emocional relevante e levaram mais da metade das mulheres a considerar interromper o acompanhamento médico. Os dados reforçam que, em contextos como a dor ginecológica, escutar com atenção, demonstrar empatia e validar o sofrimento da paciente são atitudes fundamentais.  

Mesmo quando o diagnóstico não é claro ou os recursos terapêuticos são limitados, a forma como o profissional conduz a escuta e a relação pode influenciar diretamente na continuidade do cuidado e na saúde emocional da paciente. Mais do que saber tudo, o essencial é acolher com respeito e compromisso. 

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Referências bibliográficas

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