Como abordar doenças renais na gestação? [parte 2]
Com o envelhecimento populacional e mulheres programando gestação em idades mais avançadas, é necessário ter o conhecimento das doenças renais na gestação.
Com o envelhecimento populacional e mulheres programando gestação em idades mais avançadas, é necessário ter o conhecimento das doenças renais na gestação e manejo adequado destas pacientes.
Doenças renais na gestação
Já abordamos algumas condições no primeiro texto. Agora vamos falar sobre outras e o planejamento gestacional, confira!
Nefrite lúpica
O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença que afeta mulheres em idade gestacional. A discussão sobre os riscos da gestação e planejamento familiar devem ser abordados com estas pacientes logo após o diagnóstico, visando redução dos riscos naquelas visando a maternidade. Antes de iniciar tentativa de concepção a doença deve estar controlada por ao menos 6 meses e os medicamentos ajustados.
A proteinúria, marcadores de autoimunidade (anti-DNA, anti-SSA/Ro, anti-SSB/La, anti C1q, C3, C4, anticorpos antifosfolipídeo [AAF]) e função renal basal devem ser conhecidas antes da gestação e acompanhadas durante o pré-natal. Àquelas em atividade de doença na concepção (anti-DNA + e C3 baixo) têm maior risco de exacerbações renais; anti-C1q alto com C4 baixo costumam apresentar exacerbações precoces (1º ou 2º trimestre); IMC elevado aumenta o risco de exacerbações tardias. A exacerbação renal não indica per-se a interrupção da gestação. O conhecimento da atividade da doença durante o último ano antes da concepção é um bom preditor de desfecho fetal.
Altas doses de corticoide aumentam a chance de abortos, o maior número de exacerbações está associado a maior chance de morte fetal e a presença de anti-DNA DS e ac.antifosfolipídeo (juntos) aumenta a chance de prematuridade. Anti-SSA/Ro e anti SSB/LA aumentam a chance de bloqueio cardíaco completo, uma manifestação grave do LES neonatal.
Estudos avaliaram o risco de complicações maternas durante a gestação. Exacerbações da doença, hipertensão e pré-eclâmpsia são as principais complicações. Nas pacientes já sabidamente portadoras de nefrite lúpica a mortalidade é de cerca de 1% e o risco de prematuridade e pré-eclâmpsia é elevado, em comparação às lúpicas sem nefrite.
O manejo clínico da paciente consiste no acompanhamento estrito para diagnóstico precoce das exacerbações e controle das complicações. A anticoagulação com heparina está indicada a todas a pacientes lúpicas com AAF e história de eventos trombóticos ou sem eventos trombóticos, porém três ou mais abortos precoces ou 1 perda fetal tardia. Os imunossupressores devem ser ajustados (Prednisona, AZA, Inibidores calcineurina) e a hidroxicloroquina deve ser mantida para manter a doença quiescente.
Diagnóstico Diferencial de Nefrite lúpica e Pré-eclâmpsia | ||
Nefrite Lúpica | Pré-Eclâmpsia | |
HPP de LES | Possível | Possível |
Hipertensão / edema | Sim | Sim |
Febre / Rash | Sim | Não |
Sintomas Neurológicos | Possível | Sim |
Dor em QSD | Não | Possível |
Anemia | Sim | Sim |
Trombocitopenia | Sim | Sim |
Acido úrico elevado | Sim | Sim |
Microscopia urinária | Sedimento ativo | Normal (exceto casos graves) |
IRA | Possível | Possível |
Complemento sérico | Normal para baixo | Normal para alto |
dsDNA | Positivo | Negativo |
Leia também: EULAR 2019: novidades na diretriz de manejo do lúpus eritematoso sistêmico
Síndrome hemolítico-urêmica atípica (SHUA)
A SHUA é caracterizada por anemia hemolítica microangiopática, trombocitopenia e piora de função renal.
Diferentemente da forma clássica de síndrome hemolítico-urêmica, em que quadro diarreico por E. coli produtora de shiga-toxina é o principal estímulo desencadeante, a SHUA é causada por processos que ativam de forma descontrolada a via alternativa do complemento. A gestação é um desses estímulos, contudo o diagnóstico não é simples e o diagnóstico diferencial deve ser feito com SHU “típica”, púrpura trombocitopênica trombótica (PTT) e pré-eclampsia severa com síndrome HELLP. A SHUA costuma se apresentar no puerpério enquanto outras formas de microangiopatia trombótica (MAT) no terceiro trimestre.
Quando há suspeita diagnóstico de alguma MAT, a atividade do ADAMTS13 deve ser solicitada e a plasmaférese iniciada imediatamente. Caso a atividade venha deprimida (<10%), a suspeita maior é PTT, com atividade normal a suspeita é SHUA e o tratamento com eculizumab deve ser instituído. Este medicamento é o principal tratamento estabelecido para SHUA e, consequentemente, SHUA associada a gestação.
Diagnóstico diferencial de causas de IRA gestacional | |||||
PEC | HELLP | EHAG | SHUa | PTT | |
IRA possível | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim |
Hipertensão | Sempre | Sempre | Não | Eventual | Eventual |
Proteinúria | Sim | Sim | Não | Eventual | Eventual |
Plaquetas | Baixa | Baixa | Baixa | Muito baixa | Muito baixa |
Esquizócitos | Pode haver | Sim | Não | Sim | Sim |
Aumento de AST/ALT | Pode haver | Sim | Sim | Pode haver | Pode haver |
Hipoglicemia | Não | Não | Sim | Não | Não |
LDH elevado | Eventual | Sim | Sim | Muito alto | Muito alto |
ADAMSTS 13 | Normal | Normal | Normal | Normal | Baixo |
Labs de CIVD | Raro | Raro | Comum | Ausente | Ausente |
CIVD: Coagulação IntraVascular Disseminada; IRA Insuficiência Renal Aguda; PEC pré-eclâmpsia; EHAG esteatose hepática aguda da gestação |
Nefropatia diabética
A nefropatia diabética se caracteriza por perda progressiva de função renal, com albuminúria e hipertensão. Ela está presente e cerca de 6% das mulheres grávidas portadoras de diabetes tipo 1 (DM1). A nefropatia diabética em mulheres em idade gestacional portadoras de diabetes tipo 2 (DM2) é menos comum. O risco de progressão de disfunção renal é maior nas mulheres com creatinina sérica > 1,4 mg/dL.
Mulheres portadoras de DM1 têm maior risco de desenvolver pré-eclâmpsia, independente da função renal e proteinúria. O uso de AAS não apresentou redução na incidência de pré-eclâmpsia neste grupo, contudo, devido ao baixo risco de complicação, seu uso pode ser considerado. Vale lembrar que o uso de inibidores do eixo renina angiotensina estão contraindicados na gestação, apesar de haver evidência que seu uso entre três e seis meses antes da concepção em portadoras de DM1 possa ter efeito protetivo.
Devido às alterações fisiológicas da gestação, é esperado que haja aumento da albuminúria de base em cerca de 7x o seu valor, com retorno ao observado antes da gestação próximo à 12ª semana pós-parto.
Outras complicações também são mais frequentes nas mulheres diabéticas. Abortos, prematuridade, malformações, macrossomia e mortalidade perinatal. O controle estrito da glicemia pré-concepção reduz o risco de complicações (HbA1c < 6,5%). Apesar da insulina ser a base do controle glicêmico, a metformina e gliburida podem ser continuados em portadoras de DM2 com ótimo controle glicêmico.
Devido a possível complexidade destas gestações, pode ser necessário o acompanhamento conjunto de obstetra, nefrologista e endocrinologista.
Doença renal crônica na gestação
As mulheres portadoras de insuficiência renal crônica (IRC) estão sob maior risco de diversas complicações materno-fetais e maior mortalidade em comparação com as gestantes sem doença renal. a tabela abaixo resume algumas das principais alterações observadas. Quanto pior a função renal, maior o risco de complicações.
Portadoras de IRC que desejam engravidar devem ser informadas dos riscos e fazer acompanhamento conjunto com nefrologista e pré-natal de alto risco. Quando a Cr sérica é < 1,4 mg/dL, os desfechos costumam ser semelhantes àqueles de mulheres saudáveis. Cr entre 1,4 e 3,0 mg/dl têm risco elevado do complicação e progressão de doença renal. Quando a Cr > 3,0 mg/dl há risco de evolução para estágio 5 e necessidade de terapia renal substitutiva. As doenças de base associadas (DM, LES, GN, HAS) trazem risco incremental a gestação.
Riscos maternos e fetais na gestação em portadoras de IRC | |
Eventos adversos maternos | |
● Deterioração da Função Renal | |
● Exacerbação de Doença de Base | |
● Pré-Eclâmpsia | (OR 13,36; 95%, CI 6,28-19,09) |
● Síndrome HELLP | |
● Complicações de medicamentos | |
● Parto prematuro | (OR 5,72; 95%, CI 3,26-10,03) |
Eventos adversos fetais | |
● Aborto | (OR 1,8; 95%, CI 1,03-3,13) |
● Natimorto | |
● Morte neonatal | |
● Nascimento prematuro | (OR 5,72; 95%, CI 3,26-10,03) |
● Pequeno para Idade Gestacional | |
● Baixo peso ao Nascer |
Insuficiência renal crônica dialítica e gestação
Com a evolução da doença renal há redução da fertilidade. Isto não significa que a mulher portadora de insuficiência renal avançada não possa engravidar, contudo deve-se tomar diversos cuidados para que a gestante com insuficiência renal crônica chega ao termo da gestação.
Importante destacar que o BHCG continua sendo importante marcador diagnóstico. Mesmo que valores basais desta proteína possam ser elevados, valores muito elevados e dobrando após 48-72 horas são indicativos de gravidez. A USG deve ser utilizado como método confirmatório.
O aspecto mais importante no manejo deste grupo de paciente é a manutenção da homeostase, com ureia normal (ao menos < 50 mg/dL) que pode ser obtido através de HD diária. O alvo de 36 horas semanais parece ser ideal, contudo muito difícil de alcançar. Considera-se um mínimo de 20 horas de HD/semana como objetivo viável, lembrando que a função residual tem papel importante nisso.
Mesmo com esse cuidado a mortalidade perinatal ainda é elevada e a incidência de parto pré-termo pode chegar a 80%. Isto mostra que a gestação para mulheres renais crônicas em terapia de substituição renal é possível. Deve-se atentar aos cuidados quanto as complicações da gestação em renal crônica já descritas em outra parte. De nota, vale ressaltar que os cuidados com a gestante em diálise peritoneal são semelhantes, porém a chance de ser pequeno para a idade gestacional é o dobro da paciente em hemodiálise.
Planejamento gestacional
A mulher portadora de insuficiência renal ou de alto risco para desenvolve-la deve ser acompanhada de perto pelo obstetra e nefrologista. O planejamento da gestação pode levar ao maior sucesso da gravidez e menor risco a mão e feto. Abaixo seguem algumas sugestões de cuidados pré-gestacional:
- Orientar mulheres portadoras de IRC sobre o risco de piora da função renal;
- Converter os anti-hipertensivos para reduzir risco de malformações;
- Uso de IECA por seis meses com suspensão antes da concepção em pacientes diabéticas pode reduzir o risco de pré-eclâmpsia;
- O uso de AAS pode reduzir o risco de pré-eclâmpsia e/ou pré-termo em pacientes de risco;
- Conversão de imunossupressores antes da gestação em pacientes transplantadas, lúpicas e portadoras de glomerulopatias reduzem o risco de malformações;
- Avaliação de marcadores reumatológicos antes da concepção em pacientes lúpicas podem ajudar a determinar o risco de complicações;
- Pacientes com IRC dialítica devem ter suas comorbidades controladas, estarem bem dialisadas e com medicamentos ajustados para menos risco de complicações gestacionais. Estas pacientes tem menos chance de engravidar e devem ter sua diálise otimizada na gestação;
- Orientar mulheres com DRC em progressão que uma gestação em fases menos avançadas de insuficiência renal tem menor chance de complicação e de evolução do quadro.
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