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Na última semana, foi publicado no Lancet um estudo sobre o primeiro caso de nascimento bem-sucedido após transplante de útero de doador cadáver em uma paciente com a Síndrome de Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser (MRKH). Os responsáveis por esse feito histórico foram os especialistas das equipes de transplante e reprodução assistida do Hospital das Clínicas, que é vinculado à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
Após uma série de estudos suecos em 2014, o transplante de útero intervivos se tornou uma possibilidade para tratamento de infertilidade em mulheres histerectomizadas ou com agenesia uterina. O uso do órgão de doador cadáver poderia aumentar o acesso a essa modalidade de tratamento, porém não havia sido bem-sucedido em tentativa na Turquia em 2011, que culminou em abortamento.
O procedimento foi parte de um protocolo de pesquisa aprovado pelo Comitê de Ética da FMUSP, Comitê Nacional de Ética e Sistema Nacional de Transplantes. A paciente concordou em participar e a família da doadora consentiu com a doação de coração, fígado, rins e, separadamente, útero.
A seleção da receptora contou com os seguintes critérios de inclusão:
- idade entre 21-38 anos,
- IMC < 30, infertilidade uterina primária,
- estar em um relacionamento estável há pelo menos 2 anos e estar de acordo com os termos da pesquisa.
Os critérios de exclusão foram:
- qualquer condição que contraindicasse gestação (hipertensão pulmonar, cardiopatia grave, doença auto imune ou diabetes tipo 1 descompensados),
- diminuição da reserva ovariana,
- infecção por HIV, hepatites B ou C,
- HTLV 1 ou 2,
- ou ausência de espermatozoides viáveis ao espermograma do parceiro da receptora.
A receptora selecionada foi uma mulher de 32 anos, casada há cinco anos, diagnosticada com a síndrome de MRKH. Ela apresentava agenesia uterina, sem outras alterações estruturais. Foi realizada uma angiotomografia que identificou vasculatura normal, ovários proeminentes e um útero rudimentar. Ao exame ginecológico, foi evidenciada uma vagina de 5 cm com fibrose em terço distal.
Em abril de 2016, a receptora foi submetida a fertilização in vitro após ciclo de estimulação ovariana. Os oito blastocistos obtidos foram criopreservados. Durante todo o estudo, a receptora e o parceiro receberam aconselhamento psicológico mensal das equipes especializadas em transplante e reprodução assistida. A doadora foi uma paciente de 45 anos, com três partos vaginais prévios, doadora de múltiplos órgãos, com tipo sanguíneo O positivo, diagnosticada com morte encefálica devido à hemorragia subaracnoide Fisher IV. A cirurgia da doadora se iniciou com a retirada do coração, fígado, rins e, por fim, o útero, que foi dissecado juntamente com seus ligamentos.
Foram dissecadas e isoladas as veias ovarianas, ureteres e as veias e artérias uterinas. Não foi necessária a separação dos ureteres distais, como no caso do doador vivo. A vagina foi seccionada em comprimento suficiente para anastomose com o receptor. Após a retirada da peça, os vasos menores foram cuidadosamente dissecados, identificados e testados, e foi completada a salpingectomia e ooforectomia bilaterais.
A receptora foi submetida a uma laparotomia com incisão infraumbilical. O tempo de preparação entre a dissecção dos vasos pélvicos e o início do transplante propriamente dito foi de 2h. O tempo de isquemia do órgão foi maior que o planejado, devido a uma falha de sincronização entre as cirurgias da doadora e da receptora. A anastomose dos vasos uterinos durou 56 minutos. Após a confirmação do fluxo, foram anastomosadas também as ilíacas externas.
Após a revascularização do útero, hemostasia cuidadosa dos vasos menores foi necessária. O útero rudimentar foi então seccionado para acessar o canal vaginal da receptora, e o coto da peça transplantada foi anastomosado à vagina da receptora. Por fim, foram fixados os ligamentos de sustentação do útero transplantado. O tempo de isquemia fria foi de 6 horas e 20 minutos e de isquemia quente foi de uma hora e meia. O tempo total de cirurgia foi 1o horas e meia.
Foi administrado o protocolo sueco de imunossupressão com metilprednisolona e timoglobulina no intra-operatório, seguido de manutenção com tacrolimus e micofenolato até o quinto mês após o transplante, quando foram substituídos por azatioprina e prednisona, devido ao potencial teratogênico.
Foram administrados também antimicrobianos (piperacilina+tazobactan e fluconazol) durante a cirurgia e mantidos até o sétimo dia pós transplante, além de ganciclovir profilático e sulfametoxazol/trimetoprima. Foi iniciado heparina não fracionada e AAS no primeiro dia pós operatório, mantidos até o nascimento. O tempo total de internação após o transplante foi de oito dias.
A primeira menstruação da receptora ocorreu 37 dias após o transplante e a segunda, após 26 dias. A receptora apresentou uma infecção de vias aéreas superiores e corrimento vaginal que foram devidamente tratados, sem prejuízos ao enxerto. Após cinco meses do transplante, o órgão permanecia em boas condições, confirmadas pelo USG com Doppler, menstruação regular e ausência de sinais de rejeição.
Os embriões foram transferidos pouco mais de seis meses após o transplante. O primeiro beta HCG quantitativo foi realizado 10 dias após a transferência e repetido em 48 horas, mostrando elevação esperada dos níveis séricos. O primeiro USG foi realizado quatro semanas depois a transferência, evidenciando embrião com atividade cardíaca detectável com CCN compatível com gestação de seis semanas.
Foi realizado o teste pré-natal não invasivo por volta da 10ª semana de gestação, que evidenciou feto normal do sexo feminino. O seguimento ultrassonográfico de primeiro e segundo trimestres não evidenciou anormalidades fetais. Também não houve intercorrências maternas significativas durante o acompanhamento pré-natal. Não foram identificados sinais sugestivos de rejeição nas biópsias de colo realizadas antes e durante a gestação.
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A gestante foi admitida na véspera, tendo a heparina suspensa 12 horas antes do procedimento. A cesariana programada ocorreu com idade gestacional de 35 semanas e três dias, com nascimento de uma menina saudável, APGAR 9/10/10, peso 2550 g. O recém-nascido não necessitou de nenhuma medida de suporte em sala de parto e permaneceu junto de sua mãe durante toda a internação hospitalar. Mãe e bebê receberam alta no terceiro dia após o nascimento.
O útero transplantado foi retirado no mesmo tempo cirúrgico e apresentava modificações usuais da gestação, sem evidência de rejeição. A placenta pesou 405 g e não apresentava anormalidades. Os imunossupressores foram suspensos após a histerectomia. Não houve intercorrências significativas nos primeiros sete meses após o nascimento (período em que o artigo foi escrito).
O transplante de útero é um avanço recente e é considerado experimental em muitos países. Espera-se que, com mais estudos, sejam aprimoradas as técnicas cirúrgicas, protocolos de imunossupressão e que seja reduzido o tempo de isquemia fria do órgão, possibilitando que mulheres com infertilidade uterina tenham uma opção viável para uma gestação saudável.
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