Tirzepatida na MASH
A esteato-hepatite associada à disfunção metabólica (MASH) está atrelada à doença hepática crônica avançada e suas complicações, respondendo por cerca de um terço dos transplantes hepáticos no Brasil, com números crescentes nas últimas décadas. Portanto, há uma necessidade imperativa de disponibilizar terapias capazes de modificar a sua história natural.
Nesse sentido, a tirzepatida, recentemente incorporada ao arsenal terapêutico da obesidade, demonstrou-se promissora na MASH, de acordo com o estudo SYNERGY-NASH, um ensaio clínico de fase 2 publicado simultaneamente no congresso da EASL e no NEJM em junho de 2024.
A droga atua como um agonista sintético dual sobre os receptores GIP (polipeptídeo insulinotrópico dependente de glicose) e GLP-1 (peptídeo semelhante ao glucagon 1), valendo-se da potência na indução de emagrecimento semelhante à cirurgia bariátrica, sob mediação do efeito incretinomimético. O medicamento aumenta o fluxo sanguíneo do tecido adiposo e a captação pós-prandial de triglicérides, melhora a resistência insulínica e reduz o depósito hepático ectópico de gordura, além de amplificar a oxidação de gordura no processo de emagrecimento.
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Dessa forma, há, sim, plausibilidade biológica em considerá-la no tratamento da MASH, tendo em vista que se espera, com perda ponderal superior a 10%, seja sob modificações do estilo de vida e/ou cirurgia antiobesidade, maior incidência de resolução da MASH e regressão da fibrose.
A pergunta que se faz é a seguinte: Será que os benefícios do emagrecimento na MASH são mantidos quando ele é induzido pela tirzepatida?
Em estudos prévios de fase 2, com tempo de seguimento de 48 e 72 semanas, os agonistas do receptor do GLP-1 demonstraram eficácia na resolução da MASH, mas sem implicar em regressão da fibrose.
No presente estudo, evidenciou-se, pois, que a intervenção com a tirzepatida foi, como o esperado, significativamente mais eficaz do que o placebo não só na reversão da MASH, mas também na melhora da fibrose, embora esse tenha sido um desfecho secundário.
Imagem de jcomp/FreepikDesenho do estudo e principais resultados
O estudo SYNERGY-NASH é um RCT multicêntrico envolvendo 10 países (incluindo Japão, EUA, México, Europa e Israel), duplo-cego e controlado por placebo, realizado entre janeiro/2020 e janeiro/2023 e patrocinado pela indústria farmacêutica.
O estudo envolveu 190 participantes (poder estatístico de 80%) com MASH confirmada por biópsia e fibrose moderada ou grave (estágios F2 ou F3), entre os quais 157 foram submetidos à biópsia após a 52ª semana de seguimento.
Classificação da fibrose hepática (Metavir) | |
F0 |
Ausência de fibrose |
F1 |
Fibrose leve |
F2 |
Fibrose moderada |
F3 |
Fibrose grave |
F4 |
Cirrose hepática |
Os participantes participantes foram selecionados pelos critérios de faixa etária (18 a 80 anos) e IMC (27 a 50), independentemente do diagnóstico de DM2, com biópsia hepática realizada nos últimos 6 meses.
A análise histopatológica deveria ser compatível com F2 ou F3 e com escore da atividade de NAFLD ≥ 4, em uma escala de 0 a 8 e que leva em conta esteatose, balonização de hepatócitos e inflamação lobular. Os indivíduos foram, então, randomizados para os 4 grupos abaixo descritos, em uma proporção de 1:1:1:1.
A dose inicial de tirzepatida foi de 2,5 mg/semana, com aumento gradual de 2,5 mg a cada 4 semanas, conforme a tolerância, até a dose-alvo de cada um dos 3 primeiros grupos, com taxa de sucesso em mantê-la de 96%, 96% e 85% para as doses de 5, 10 e 15 mg, respectivamente.
Os critérios de exclusão foram doença hepática crônica de outras etiologias, cirrose ou descompensação hepática; uso abusivo de álcool (> 14 ou 21 doses-padrão semanais para mulheres e homens, respectivamente); DM2 descontrolado (HbA1C > 9,5%) e uso de medicamentos confundidores (agonistas do receptor GLP-1 ou terapia antiobesidade de outra natureza).
O desfecho primário foi a reversão da MASH (definida por ausência de esteatose ou esteatose simples sem esteato-hepatite), na ausência de agravamento da fibrose após a 52ª semana, enquanto o desfecho secundário principal foi a melhora de pelo menos 1 estágio da fibrose, sem agravamento da MASH. Ambos desfechos são endossados pelas agências regulatórias, como o FDA.
Vários outros desfechos exploratórios foram incluídos, como o FIB4, parâmetros da RM de abdome (a exemplo do conteúdo de água extracelular hepático), FibroScan®, enzimas hepáticas, citoqueratina 18 e Pró-C3.
População do estudo
- A idade média foi de 54,4 anos, com predomínio de mulheres (57%) e etnia branca (86%). O IMC médio de 36,1 e mais da metade apresentava DM2.
- A maioria dos indivíduos apresentava grau 3 de fibrose de Metavir:
Grupos |
Tirzepatida |
Placebo | ||
5 mg |
10 mg |
15 mg | ||
Reversão na MASH, sem piora da fibrose |
43,6% |
55,5% |
62,4% |
9,8% (P < 0,001) |
Melhora da fibrose em ao menos 1 estágio, sem piora da MASH |
54,9% |
51,3% |
51% |
29,7% (P < 0,001) |
Redução do peso corporal |
10,7% |
13,3% |
15,6% |
0,8% |
A análise de desfechos secundários adicionais demonstrou melhora de biomarcadores de lesão hepática e da taxa de gordura hepática.
Vale ressaltar que o desenho do estudo não objetivou demonstrar melhora da fibrose, embora os resultados tenham sido promissores nesse quesito, especialmente no grupo de pacientes com F3 à alocação.
Perfil de segurança
- A tirzepatida foi, em geral, considerada segura, em consonância com os relatos prévios dos estudos de fase 3: SURMOUNT-1 (obesos e não diabéticos) e SURPASS (diabéticos).
- A maioria dos eventos adversos foi gastrointestinal, a exemplo de náuseas, diarreia, hiporexia e constipação), de intensidade leve a moderada em 96% dos casos e com taxa de descontinuação semelhante ao grupo placebo (4% em ambos grupos).
Conclusão e Mensagens práticas
- O estudo de fase 2 SYNERGY-NASH demonstrou que a tirzepatida é um tratamento promissor para a MASH e fibrose, com eficácia na reversão da MASH e na melhora da fibrose, com perfil de segurança favorável.
- A maioria dos pacientes leva 5 anos para melhorar um estágio de fibrose após a cirurgia bariátrica. Se o mesmo for válido para a tirzepatida, estaremos diante da necessidade provável de terapias com duração entre 52 e 72 semanas, o que exigirá atenção adicional à custo-eficácia e dados de segurança, incluindo carcinoma medular de tireoide.
- Os pontos fracos do estudo foram a amostra pequena para realizar inferências sobre a fibrose, tempo de seguimento curto para avaliar desfechos hepáticos adversos maiores e sub-representação de indivíduos de pele preta.
- Ficaremos no aguardo dos estudos de fase 3 e dos resultados em longo prazo em termos de eficácia e perfil de eventos adversos.
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