A peritonite bacteriana espontânea (PBE) é uma das principais causas de descompensação aguda das hepatopatias crônicas. Dessa forma, a paracentese propedêutica, sempre que houver ascite puncionável, é uma ferramenta indispensável nesse cenário.
Sob uma óptica operacional, o principal critério diagnóstico da PBE é a identificação de uma ascite neutrofílica e com contagem de polimorfonucleares ≥ 250/mm³, desde que afastado foco infeccioso intracavitário (condição que, uma vez presente, define a peritonite bacteriana secundária).
A positividade monomicrobiana (geralmente com enterobactérias gram negativas) do líquido ascítico, por sua vez, embora característica da PBE, tem sensibilidade apenas limitada. Uma dica prática para otimizar a sensibilidade das culturas do líquido ascítico é realizar a semeadura à beira do leito, logo que coletado, com a inoculação do espécime em balões de hemocultura.
As principais diretrizes recomendam a instituição de antibioticoprofilaxia secundária após um primeiro episódio de PBE, comumente com a prescrição de quinolonas (norfloxacino ou ciprofloxacino) ou sulfametoxazol-trimetoprima. Tal conduta, embasada em estudos da década de 1990, tem sido questionada na atualidade, em razão de mudanças do perfil microbiológico e preocupação crescente quanto à resistência antimicrobiana.
Veja mais:Profilaxia primária para Peritonite Bacteriana Espontânea: benefício ou risco?
Uma nova e importante evidência!
O desempenho da antibioticoprofilaxia secundária dedicada à PBE foi avaliado em uma análise de 2 coortes norte-americanas, compreendendo mais de 11.000 pacientes diagnosticados com PBE entre 2009 e 2019.
O estudo foi publicado por Silvey e colaboradores no prestigiado American Journal of Gastroenterology (fator de impacto: 10,2) em maio de 2025, trazendo à tona dados muito relevantes sobre o desempenho da antibioticoprofilaxia secundária.
Abaixo sintetizamos as principais características das 2 coortes utilizadas:
Bases de dados |
Características |
VA CDW |
|
TriNetX |
|
Em ambas coortes, apenas metade da população estava exposta à antibioticoprofilaxia, sobretudo com ciprofloxacino e sulfametoxazol-trimetoprima.
De maneira surpreendente, o risco de recorrência de PBE foi maior no grupo exposto à antibioticoprofilaxia: 24% vs. 15%, com hazard ratio (HR) de 1,6, com manutenção dos dados após os ajustes multivariados direcionados à equilibrar a gravidade entre os grupos:
- No grupo de veteranos, a taxa de recorrência de PBE foi de 24,1% (611 casos) no grupo de profilaxia antimicrobiana em comparação a 13,7% (293 casos) no grupo sem a intervenção, de forma que o HR foi de 1,82 (IC 95%: 1,59 a 2,1, P < 0,001);
- No grupo de assegurados, a taxa de recorrência de PBE no grupo de antibioticoprofilaxia foi de 22,5% (734 casos) em comparação a 16% (551 casos) no grupo sem a intervenção, condicionando um HR de 1,61 (IC 95%: 1,44 a 1,8, P < 0,001).
|
Veteranos | Assegurados | ||
Antibioticoprofilaxia |
Sim |
Não |
Sim |
Não |
Recorrência de PBE (2 anos) |
24,1% (611) |
13,7% (293) |
22,5% (734) |
16% (551) |
Mortalidade global (2 anos) |
61,6% (1.564) |
59,1% (1.261) | 37%
(1.207) | 33,6%
(1.157) |
Transplante hepático (2 anos) |
3,5% (87) |
1,5% (33) |
14,4% (468) |
5,5% (191) |
Destacou-se ainda a maior prevalência de resistência de infecções por germes resistentes às quinolonas entre os que estavam recebendo a profilaxia com essa classe farmacológica: 68% vs. 46%.
Conclusão e Mensagens práticas
- Os resultados deste estudo colocam em questionamento a recomendação atual de instituir a profilaxia secundária rotineira dedicada à PBE;
- A estratégia de antibioticoprofilaxia secundária pode aumentar o risco de novas infecções e contribuir para a resistência antimicrobiana, sem impactar na mortalidade;
- Diante desses dados, faz-se necessário reavaliar a conduta, primando pelo uso criterioso da profilaxia, baseado em dados microbiológicos e no risco individual, enquanto RCTs direcionados ao tema são aguardados.
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