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Gastroenterologia17 abril 2025

Doença celíaca e o risco de evolução para doença hepática crônica

A doença celíaca (DC) é uma causa possível de aumento persistente e inexplicado de enzimas hepática, correlacionando-se com elevação do risco de desenvolvimento de DHC
Por Leandro Lima

Um raciocínio sempre válido diante do aumento persistente e inexplicado das enzimas hepáticas é considerar a possibilidade de doença celíaca (DC), pois um quinto desses indivíduos apresenta-se com aumento de AST e/ou ALT.  

As dúvidas que surgem é se (1) o aumento das enzimas hepatocelulares entre os celíacos se traduz em risco elevado para desfechos hepáticos no longo prazo, e (2) se a normalização das transaminases com a dieta isenta de glúten, esperada em 80% dos pacientes aderentes, seria, de fato, um fator de proteção.  

Com o intuito de trazer luz sobre essas questões, foi publicado, em março de 2025, no prestigiado periódico The Lancet, um estudo de coorte populacional proveniente de base de dados de anatomia patológica gastrointestinal sueca – ESPRESSO.  

Foram englobados mais de 48 mil portadores de DC, com tempo de seguimento de até 25 anos, com início da alocação em 1969 e término em 2017.  

Os principais critérios de exclusão foram histórico de hepatopatia ou lesões de órgão-alvo relacionadas ao álcool, infecção pelo HIV ou transplante hepático precedendo a alocação no estudo.  

doença celíaca

Racional fisiopatológico 

Os principais mecanismos fisiopatológicos inferidos para a propensão à hepatopatia na DC incluem: 

  • Disfunção da barreira intestinal, alteração da microbiota e exposição a antígenos alimentares e bacterianos via circulação portal;  
  • Perda da autotolerância das células T atrelada à resposta imune exacerbada; 
  • Compartilhamento de regiões do HLA entre os portadores de DC e doenças hepáticas autoimunes; 
  • Ativação de vias de sinalização de ácidos biliares mediadas pelo receptor farnesoide X a partir da exposição antigênica bacteriana; 
  • Predisposição à MASLD acelerada induzida pelas alterações dietéticas impostas pela retirada do glúten e maior tendência de uso abusivo de álcool nessa população.  

Os principais resultados 

A idade mediana do diagnóstico de doença celíaca foi de 27 anos, com predomínio do sexo feminino (63% vs. 37%) e com tempo de seguimento superior a duas décadas em um terço dos casos.  

Em relação às comorbidades, chamou a atenção o fato de que os portadores de DC apresentaram maior prevalência de diabetes (5,4% vs. 2%) e doenças autoimunes (10,7% vs. 2,7%) do que a população controle.  

O risco evolutivo para doença hepática crônica (DHC) – o desfecho primário do estudo – foi o dobro entre os celíacos do que na população geral (79,4 vs. 39,5 por 100.000 pessoas-ano), sendo as etiologias mais prevalentes: 

  1. Doença hepática autoimune (hepatite autoimune, colangite biliar primária e colangite esclerosante primária): hazard ratio ajustada (aHR) de 4,86; 
  2. Doença hepática esteatótica associada à disfunção metabólica (MASLD): aHR de 2,54;  
  3. Doença hepática alcoólica: aHR de 1,51.  

O risco absoluto de progressão para DHC, contudo, foi baixo: 1 caso adicional para cada 110 pacientes ao longo de 25 anos, tendo sido o tempo mediano de seguimento de 16 anos.  

Em relação aos eventos hepáticos graves combinados (cirrose, carcinoma hepatocelular, transplante hepático ou morte por origem hepática), observou-se um aumento de 54% (aHR = 1,54, IC 95%: 1,4 a 1,7). Os subgrupos de maior risco foram os portadores de hepatite autoimune e síndrome metabólica.  

Um dado interessante é que a persistência de atrofia vilositária, ao contrário do que se poderia imaginar, não aumentou o risco de progressão para DHC, embora tenha sido observada uma tendência à maior mortalidade por origem hepática.  

Pontos fortes do estudo 

A coorte com N robusto, de quase 50 mil indivíduos, por um tempo de seguimento de até 25 anos, é o grande destaque.  

Além disso, a comparação com amostras da população geral e com irmãos não acometidos pela DC, que contemplaram 230 e 53 mil indivíduos, respectivamente, com pareamento para sexo, idade, tempo de diagnóstico da doença celíaca e residência, trouxe robustez adicional aos dados obtidos. 

Pontos fracos do estudo 

O critério de inclusão limitou-se a casos de DC comprovados por biópsia e com atrofia vilositária (Classificação de Marsh 3), tendo sido excluídos os diagnósticos pautados exclusivamente na sorologia, como tem sido recomendado na pediatria.  

Ademais, foram omitidos dados sobre a adesão à dieta isenta de glúten, hábitos alimentares e o padrão de consumo de álcool, importantes fatores de confusão nesse cenário.  

Por fim, a amostra exclusivamente sueca, com predomínio de indivíduos nórdicos (>95%), traz limitações a uma generalização mais ampla dos dados apresentados.     

Conclusão e Mensagens práticas 

  • A doença celíaca (DC) é uma causa possível de aumento persistente e inexplicado de enzimas hepática, correlacionando-se com elevação do risco de desenvolvimento de doença hepática crônica (DHC);  
  • As enzimas hepáticas, portanto, devem ser monitoradas entre os portadores de DC, sobretudo a AST e ALT – e essa pode ser a primeira manifestação da doença em casos com sintomatologia atípica;  
  • A abordagem ampla do portador de DC deve incluir, portanto, orientações de bons hábitos de vida, com dieta saudável, prática regular de atividade física e uso moderado ou nulo de bebidas alcóolicas. 

 

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Referências bibliográficas

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