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Gastroenterologia29 novembro 2024

Anticolinérgicos na síndrome do intestino irritável

Os anticolinérgicos são usados na síndrome do intestino irritável (SII) para aliviar a dor abdominal, especialmente sob demanda ou em antecipação a fatores exacerbadores.
Por Leandro Lima

Este conteúdo foi produzido pela Afya em parceria com Mantecorp Farmasa de acordo com a Política Editorial e de Publicidade do Portal Afya.

A síndrome do intestino irritável (SII) é uma condição crônica do trato gastrointestinal (TGI) que está inserida no âmbito das desordens funcionais da interação do eixo intestino-cérebro.1

A prevalência populacional é elevada, acometendo aproximadamente 1 a cada 15 pessoas,2 gerando elevada morbidade e redução da qualidade de vida,3 com grande impacto socioeconômico4 e incremento na utilização dos serviços de saúde.1

O Consenso de Roma IV,5 publicado em 2016, atualizou os critérios diagnósticos para a SII, destacando-se a dor abdominal recorrente desvinculada de sinais de alarme, com pelo menos 1 episódio/semana no último trimestre e início do quadro há pelo menos 6 meses. A dor abdominal deve envolver ao menos duas entre seguintes características: (1) relação com a defecação; (2) associação com mudança na frequência ou (3) forma das fezes.

Os antiespasmódicos têm como alvo principal a dor abdominal, especialmente com o uso sob demanda ou diante da antecipação de fatores exacerbadores, a exemplo de gatilhos alimentares, valendo-se do alívio sintomático em curto prazo no período pós-prandial.3

Classes de antiespasmódicos7
Relaxantes diretos da musculatura lisaMebeverina
Anticolinérgicos e antimuscarínicosEscolapamina, Hiosciamina e Diciclomina.
Antagonistas dos canais de cálcioÓleo de hortelã pimenta, otilônio, pinavério e trimebutina

A escopolamina tem como principal via de administração a oral, na dose de 10 a 20 mg em três tomadas diárias.2 O mecanismo de ação é pautado na inibição de receptores muscarínicos da acetilcolina6 no TGI, promovendo relaxamento da musculatura lisa com redução da motilidade e, portanto, atenuando a hipersensibilidade visceral.3

De acordo com uma metanálise de 26 estudos controlados randomizados (RCTs), os agentes antiespasmódicos, em relação ao placebo, associaram-se a um risco relativo (RR) de persistência de sintomas de 0,65 (IC 95%: 0,56 a 0,76 – redução em 35% da carga de sintomas) e número necessário para tratar (NNT) de 3,5. Os efeitos colaterais mais corriqueiros foram a xerostomia, tontura e turvação visual,2 com RR de 1,6 (IC 95%: 0,15 a 2,21),2 com maior vulnerabilidade entre os idosos.

As principais contraindicações à utilização da escopolamina são a hipertrofia prostática benigna com histórico de  retenção urinária, obstrução intestinal mecânica, megacólon, miastenia gravis e glaucoma de ângulo fechado não tratado.7

A problemática do emprego dos antiespasmódicos na SII é que a maioria dos estudos envolveu classes farmacológicas heterogêneas, com escassez de dados individuais de cada medicamento, além de importantes limitações metodológicas.3 Dessa forma, apesar das principais sociedades de gastroenterologia os manter como primeira linha de tratamento na SII, a recomendação é fraca, tendo em vista da fragilidade da evidência.

A escopolamina foi avaliada, de maneira objetiva, em 3 estudos, com duração entre 1 e 3 meses, tendo sido demonstrada a eficácia em relação ao placebo em aliviar os sintomas da SII:1

AnoNPaís e faixa etáriaIntervençãoComparaçãoResultados
197996Inglaterra

16 a 69 anos

Escopolamina 10 mg 6/6h por 3 mesesPlaceboMelhora dos sintomas: 46% vs. 29%
1984168Índia

16 a 68 anos

Escopolamina por 3 mesesPlaceboMelhora dos sintomas: 45,3% vs. 29,7% (P < 0,005)
1990360Alemanha

18 a 79 anos

Escopolamina 10 mg 8/8 horas por 1 mêsPlaceboMelhora dos sintomas: 76% vs. 64%.

            A utilização da escopolamina na dor abdominal recorrente, na ausência de critérios para a SII, foi avaliada em 2 estudos multicêntricos, publicados em 2006 e 2013, que demonstraram a eficácia em reduzir, de forma significativa, a intensidade e frequência da dor abdominal em relação ao placebo (P < 0,0001), ao ser empregada por 3 meses na dose de 10 mg de 8/8 horas.

Caso clínico

Um homem de 41 anos, casado, pai de dois filhos e pedreiro, procurou inúmeros atendimentos médicos por conta de dor abdominal, chegando, por fim, à gastroenterologia.

Há cerca de 12 meses, na sequência de evento estressor familiar significativo, passou a apresentar dor abdominal difusa, recorrente e associada a eructações, borborigmos e alteração do padrão intestinal, com aumento da frequência evacuatória de uma para quatro exonerações diárias, além de mudança da consistência das fezes, habitualmente bem formadas (Bristol 3 ou 4), mas com consistência pastosa ou líquida durante os episódios de agravamento da dor (Bristol 6 ou 7).

Na ausência de sinais de alarme, foi proposto o tratamento empírico para parasitose intestinal com secnidazol 2 g em dose única e albendazol 400 mg/dia por 3 dias, além da dosagem de calprotectina fecal e triagem para doença celíaca com IgA total e antitransglutaminase tecidual do tipo IgA. Foi ainda realizada um trial da dieta com baixo teor de FODMAPs por 4 semanas e uso de escopolamina 10 mg 8/8 horas e loperamida 2 mg sob demanda.

Na consulta de retorno, realizada em 2 semanas, houve melhora significativa dos sintomas, com impacto positivo sobre a qualidade de vida, motivo pelo qual foi feita a orientação de utilização do antiespasmódico sob demanda. A dosagem de calprotectina fecal resultou em 84,5 mcg/g (referência < 50 mcg/g). Prosseguiu-se com colonoscopia.

Na próxima avaliação, realizada em 4 semanas, houve agravamento do quadro álgico, com necessidade do uso constante da escopolamina, ainda que com boa adesão à dieta com baixo teor de FODPMAPs.

Em uma abordagem mais aprofundada, viabilizada pelo ganho de confiança na relação médico-paciente, pode-se firmar o diagnóstico de transtorno de ansiedade generalizada concomitante. A colonoscopia, realizada até o ceco e com bom preparo (Boston: 9), não demonstrou anormalidades. Pela incapacidade de avaliação do íleo terminal, foi solicitada enterotomografia. Foi excluída a deficiência isolada de IgA e a antitransglutaminase tecidual IgA resultou negativa.

Nesse momento, optou-se pela introdução de nortriptilina 10 mg/dia, com progressão gradual até a dose de 75 mg/dia, mantendo-se a escopolamina como medida de resgate, além do uso pontual de benzodiazepínico na fase de adaptação do tricíclico.

Em consulta de retorno em 3 meses, o paciente relatou grande satisfação em relação ao tratamento, com melhora pronunciada e sustentada da qualidade de vida, bem como aumento do entendimento da doença a partir da identificação de gatilhos alimentares específicos que permitiram o uso prandial do antiespasmódico diante de refeições específicas. A enterotomografia, com boa distensão das alças de delgado pelo meio de contraste neutro (polietilenoglicol), foi completamente normal.

O diagnóstico final foi de síndrome do intestino irritável, com predomínio de diarreia (SII-D), associada à comorbidade psiquiátrica: transtorno de ansiedade generalizada e grave, pelo grande impacto que trouxe sobre a qualidade de vida.

O valor discretamente alterado da calprotectina fecal foi interpretado como falso negativo, com a reflexão de que acabou gerando aumento dos custos e da ansiedade do paciente diante da realização de colonoscopia e enterotomografia, embora as condutas tenham sido tomadas em consonância com o Consenso de Roma IV.

Conclusão e mensagens práticas

  • Os agentes antiespasmódicos, como a escopolamina, estão incluídos no escopo da primeira linha de tratamento da síndrome do intestino irritável e da dor abdominal recorrente.
  • Os dados de eficácia e segurança, a maioria proveniente de estudos pequenos, heterogêneos e com limitações metodológicas das décadas de 1970 e 1990, são favoráveis à sua utilização, com um número necessário para tratar para gerar alívio sintomático de 3,5.
  • Em razão de sua meia-vida curta, a principal aplicabilidade recai no uso sob demanda ou diante da previsão de fatores exacerbadores, como os gatilhos prandiais.
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Referências bibliográficas

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