O rastreamento do diabetes mellitus gestacional (DMG) ainda é um dos pontos mais controversos do acompanhamento pré natal. Embora as diretrizes internacionais, como as da IADPSG, da OMS e SBD, recomendem o teste oral de tolerância à glicose (TOTG) com 75 g entre 24 e 28 semanas, há evidências de que a disfunção metabólica que culmina no DMG começa muito antes. O metabolismo pode sofrer modificações significativas no início da gestação, com aumento da resistência insulínica hepática, hiperinsulinemia compensatória e alterações nos lipídios e adipocinas. Assim, o diagnóstico tardio pode deixar escapar um período de maior plasticidade metabólica, no qual intervenções precoces poderiam modificar o curso da doença.
Contudo, ainda não há consenso sobre a utilidade clínica e a acurácia de um TOTG realizado no primeiro trimestre. Para tentar preencher essa lacuna do conhecimento médico, recentemente foi publicado um estudo no periódico Diabetologia, da European Association for the Study of Diabetes (EASD), avaliando a capacidade preditiva do TOTG precoce e de biomarcadores metabólicos e placentários na identificação de gestantes que posteriormente desenvolveriam DMG.
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Métodos do estudo
O estudo foi uma coorte prospectiva internacional e multicêntrica, envolvendo seis centros universitários de obstetrícia na Suíça, Alemanha e Áustria. Foram incluídas 657 gestantes de baixo e médio risco, avaliadas em média com 13,4 semanas de gestação (intervalo interquartil de 12,7–14,1 semanas). Todas as participantes passaram por um TOTG de 75 g realizado de forma cega, ou seja, os resultados não foram divulgados às pacientes nem aos profissionais assistentes, a menos que fossem compatíveis com diabetes manifesto (jejum ≥ 126 mg/dL ou 2h ≥ 200 mg/dL).
Foram excluídas mulheres com diabetes prévio, doenças hepáticas, renais ou cardíacas crônicas, uso de medicamentos hipoglicemiantes ou história de cirurgia bariátrica. Além do TOTG precoce, foram coletadas amostras em jejum para dosagem de múltiplos marcadores metabólicos e placentários como insulina, triglicerídeos, HDL, adiponectina, lipocalina-2, fator de crescimento placentário (PlGF), vitamina D, frutosamina, albumina glicada e fibronectina glicada.
Entre 24 e 28 semanas de gestação, todas as gestantes foram reavaliadas com um novo TOTG (para fins diagnósticos), de acordo com os critérios da IADPSG/OMS (jejum ≥ 92 mg/dL, 1h ≥ 180 mg/dL, 2h ≥ 153 mg/dL). As mulheres diagnosticadas com DMG receberam orientação nutricional, modificações de estilo de vida e, quando necessário, insulina.
A prevalência de DMG na coorte foi de 12,6% (83 mulheres). A média de idade das participantes foi de 32 anos, e o IMC pré-gestacional médio de 24,1 kg/m², sendo significativamente maior no grupo que evoluiu para DMG (26,2 vs. 23,8 kg/m²). A distribuição de casos foi homogênea entre os centros, o que reforça a validade externa do achado.
Mesmo antes do diagnóstico formal de DMG, as gestantes que futuramente desenvolveram a doença apresentavam um perfil metabólico mais adverso. Já no primeiro trimestre, exibiam:
- Glicemias médias mais elevadas em todas as fases do TOTG (jejum 84 vs. 79 mg/dL; 60 min 137 mg/dL vs. 107 mg/dL; 120 min 112 mg/dL vs. 89 mg/dL, p<0,001 para todas);
- Insulinemia mais alta em jejum (mediana 58,7 vs. 48,6 pmol/L, p=0,001);
- Triglicerídeos aumentados (126vs. 113 mg/dL, p=0,023);
- Adiponectina reduzida (6,2 vs. 8,5 µg/mL, p<0,001);
- Fibronectina glicada discretamente mais elevada (30,5 vs. 26,8 mg/dL, p=0,015).
Houve maior proporção de mulheres com etnia não europeia (26,3% vs. 14%) e história prévia de DMG (8,6% vs. 3,4%).
Avaliação funcional do metabolismo da glicose em Viena
Em uma subamostra (no centro de Viena), foi possível estudar detalhadamente a homeostase glicêmica com medidas seriadas de insulina e peptídeo C, calculando índices derivados:
- ISI-comp (índice de sensibilidade à insulina)
- AUC-I/AUC-G (índice insulinogênico)
- ISSI-2 (produto entre secreção e sensibilidade)
Os resultados, em resumo, mostraram uma correlação significativa entre as glicemias do TOTG precoce e resistência insulínica global, tanto no TOTG basal quanto na reavaliação do segundo trimestre. Glicemias mais altas em jejum e após sobrecarga correlacionaram-se fortemente com menor ISSI-2 e maior HbA1c basal, sugerindo que a hiperglicemia precoce já é reflexo de disfunção conjunta da célula beta e da ação insulínica.
Desempenho preditivo do TOTG e dos biomarcadores
A análise confirmou que o TOTG precoce foi um bom preditor da futura ocorrência de DMG. Os valores de área sob a curva (AUC) foram:
- glicemia de jejum: 0,68 (IC95% 0,61–0,75);
- glicemia de 60 min: 0,74 (IC95% 0,68–0,79);
- glicemia de 120 min: 0,72 (IC95% 0,65–0,78)
A combinação dos três valores (num modelo de regressão) elevou a AUC para 0,75, superando qualquer outro marcador laboratorial testado.
Entre os biomarcadores, apenas adiponectina, insulina e triglicerídeos mostraram associação significativa, porém com acurácia modesta (AUC entre 0,58 e 0,62). Nem PlGF, vitamina D, frutosamina nem lipocalina-2 apresentaram valor preditivo independente.
Quando o desfecho foi DMG com necessidade de insulina (25 casos), a capacidade discriminatória foi ainda maior:
- Glicemia de jejum: AUC 0,77;
- Glicemia de 60 min: AUC 0,79;
- Glicemia de 120 min: AUC 0,71;
- Combinação jejum + 60 min: AUC 0,85 (IC95% 0,78–0,93).
Assim, o padrão de resposta glicêmica dinâmica no TOTG do primeiro trimestre foi o melhor marcador de gravidade futura, superando IMC, lipídios ou adipocinas.
Desfechos gestacionais
Os desfechos obstétricos não diferiram significativamente entre os grupos, possivelmente pelo manejo adequado após o diagnóstico de DMG. O peso neonatal médio foi semelhante (3,4 ± 0,5 kg em GDM vs. 3,3 ± 0,5 kg em controles), sem diferença nas taxas de macrossomia, pequenos para idade gestacional ou cesariana.
Conclusão e mensagem prática
Esse estudo fornece uma evidência convincente de que o TOTG precoce é uma ferramenta útil de estratificação de risco, mesmo sem limiares diagnósticos formalmente definidos. Glicemias discretamente elevadas já identificam uma trajetória metabólica adversa, marcada por resistência insulínica e falha de compensação pancreática, que se traduz em maior probabilidade de DMG e de necessidade de tratamento com insulina.
Os padrões de glicemia pós-sobrecarga podem sinalizar disfunções periféricas precoces, tanto na captação muscular de glicose como na secreção tardia de insulina, que não são detectadas apenas pela glicemia de jejum.
Além disso, a observação de que biomarcadores como adiponectina e triglicerídeos agregam pouco valor incremental reforça o foco no TOTG como um melhor candidato à ferramenta de triagem precoce.
Em síntese, o estudo demonstra que o TOTG precoce pode auxiliar na predição de gestantes que desenvolverão DMG e quem necessitará de tratamento intensivo. Esses achados abrem caminho para uma abordagem mais preventiva e individualizada, em que a atenção ao risco de DMG começa já no início da gestação. Contudo, vale destacar que, apesar de não ter sido um dos objetivos primários do estudo, não houve diferenças em desfechos gestacionais entre o grupo de maior risco ou não, reforçando a necessidade de se investigar o impacto em conjunto de intervenções precoces, e não apenas o poder de estratificação, para se estabelecer de fato os potenciais benefícios ligados à essa abordagem mais cedo na gravidez.
Autoria

Luiz Fernando Fonseca Vieira
Endocrinologista pelo HCFMUSP ⦁ Telemedicina no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) ⦁ Residência médica em Clínica médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) ⦁ Graduação em Medicina pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) - Faculdade de Medicina de Botucatu
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