O diabetes mellitus gestacional (DMG) afeta cerca de 14% das gestações globalmente e representa uma condição heterogênea, que agrega riscos obstétricos e maior chance de desenvolvimento de diabetes ao longo da vida para as mães: Mulheres com história de DMG apresentam um risco até dez vezes maior de desenvolver DM2, com incidência cumulativa próxima de 60% nas décadas seguintes ao parto. Dada essa elevada susceptibilidade, a diretriz da ADA recomenda uma avaliação metabólica em até seis meses após o parto com teste oral de tolerância à glicose (TOTG) 75g, checando a glicemia duas horas pós a sobrecarga de glicose — considerado mais sensível que glicemia de jejum ou HbA1c para detectar disfunção glicêmica precoce.
Entretanto, na prática clínica, apenas cerca de 40% a 50% das mulheres realizam esse exame. O principal obstáculo relatado é o tempo necessário para realizar o teste, especialmente num período de grandes demandas como o puerpério. Nesse ínterim, surgiu uma proposta de abordagem mais prática: utilizar a glicemia de uma hora pós-carga no TOTG como novo critério diagnóstico de diabetes, conforme sugerido pelas recomendações recentes da Federação Internacional de Diabetes (IDF), que propõe os limiares de ≥ 155 mg/dL (8,6 mmol/L) para hiperglicemia intermediária e ≥ 209 mg/dL (11,6 mmol/L) para o diagnóstico de diabetes. Tal recomendação já está endossada pela Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD). Contudo, o impacto que tal recomendação poderia trazer para as puérperas ainda é desconhecido.
Portanto, foi elaborado um estudo prospectivo com o intuito de avaliar o impacto que o TOTG 1h pode trazer em termos de acurácia diagnóstica e melhor praticidade para a avaliação pós gestacional. O estudo foi publicado recentemente na Diabetes Care, jornal da American Diabetes Association (ADA).
O ESTUDO
O estudo foi uma coorte prospectiva, que recrutou 369 mulheres que representavam níveis variados de glicemia na gestação (desde normoglicemia até DMG diagnosticado). As participantes realizaram TOTGs seriados (com coletas aos 0, 30, 60 e 120 minutos) aos três meses, um ano, três anos e cinco anos após o parto. O objetivo principal foi avaliar se a glicemia de uma hora em três meses pós-parto predizia melhor o desenvolvimento de disfunção glicêmica futura do que a glicemia de duas horas, considerando como desfecho o diagnóstico subsequente de pré-diabetes ou DM2 (por critérios da OMS e/ou IDF).
A média de idade das participantes era de 35,7 anos (±4,3), com predomínio de mulheres brancas (cerca de 69%), mas com maior proporção de etnias não brancas no tercil superior de glicemia de uma hora. O índice de massa corporal (IMC) foi discretamente mais alto nas mulheres com maior glicemia de uma hora (27,3 vs. 26,0 kg/m²; p = 0,046), e o histórico de DMG esteve presente em mais da metade das mulheres no tercil superior (55,3%).
No baseline (três meses), observou-se uma clara deterioração progressiva de marcadores metabólicos conforme a glicemia de uma hora aumentava. No tercil superior (≥ 162 mg/dL), as participantes apresentaram menor sensibilidade à insulina (Matsuda index: 7,6 vs. 13,1 no tercil inferior; p < 0,0001) e disfunção progressiva de célula beta (ISSI-2 e IGI/HOMA-IR: p < 0,0001). Essa diferença foi mantida ao longo dos cinco anos subsequentes.
Resultados
Aos três meses pós-parto, 156 mulheres foram classificadas com disfunção glicêmica pela glicemia de uma hora, contra 70 pela glicemia de duas horas. Houve sobreposição significativa: 60 mulheres foram positivas nos dois critérios, 96 apenas na glicemia de uma hora; e dez, exclusivamente pela glicemia de duas horas. Com o passar do tempo, a proporção de mulheres positivas em ambos aumentou, indicando que a elevação da glicemia de uma hora antecede a de duas horas — o que respalda seu valor como marcador precoce.
Considerações
Os autores do estudo analisaram comparativamente o uso do TOTG 1h e TOTG 2h, demonstrando uma curva ROC tempo-dependente sem diferença significativa após três meses, um ano, três anos ou cinco anos após a gestação, ou seja, ambos os testes tiveram uma capacidade parecida para predição de disglicemias.
Após, com o objetivo de comparar o poder preditivo de cada marcador, os autores usaram o índice de concordância (concordance index, ou CCI), que mede a capacidade de um modelo prever corretamente o tempo até o desfecho (neste caso, disfunção glicêmica). O ΔCCI (delta do CCI) expressa o quanto a inclusão de um determinado preditor melhora a acurácia do modelo. Quanto maior o ΔCCI, maior o poder preditivo do fator analisado.
Na análise multivariada ajustada, a glicemia de uma hora foi o preditor isolado mais forte de desenvolvimento futuro de disfunção glicêmica:
- Glicemia de 1h: HR ajustado 1,40 [1,302–1,499], ΔCCI = +16,1%
- Glicemia de 2h: HR ajustado 1,40 [1,299–1,499], ΔCCI = +14,9%
- Glicemia de jejum: HR ajustado 2,10 [1,486–2,954], ΔCCI = +5,2%
- IMC: HR ajustado 1,06 [1,035–1,094], ΔCCI = +3,2%
- Etnia não branca: ΔCCI = +6,7%
Mesmo entre as 135 mulheres com DMG prévio, a glicemia de uma hora se manteve como melhor preditor (ΔCCI = +13,0%) frente à de duas horas (12,8%). Além disso, a curva de incidência cumulativa mostrou aumento progressivo da taxa de disfunção glicêmica entre os tercis de glicemia de uma hoa (log-rank p < 0,0001), com manutenção do padrão de piora dos índices de sensibilidade à insulina e função de célula beta até cinco anos após o parto.
Conclusão e mensagem prática
Este estudo apresenta evidências robustas a favor do uso da glicemia de uma hora como alternativa mais prática e sensível para o rastreio glicêmico no puerpério. No Brasil, onde a adesão ao TOTG pós-parto também é frequentemente baixa por razões logísticas e socioeconômicas, a adoção de um teste simplificado com coleta em uma hora pode melhorar significativamente a identificação de mulheres em risco de evoluir para DM2.
A superioridade da glicemia de uma hora em prever disfunção metabólica precoce sugere que poderíamos identificar e intervir mais cedo, antes mesmo que a glicemia de duas horas se eleve. Isso pode ser especialmente relevante à luz das novas terapias farmacológicas com potencial efeito em perda de peso e prevenção do diabetes. Contudo, é importante reconhecer que o teste de uma hora ainda exige jejum e comparecimento ao laboratório, o que ainda pode ser uma barreira para sua realização.
Por fim, este estudo traz evidências acerca do uso do TOTG 1h também para o rastreio metabólico pós gestação, em consonância com os guidelines atuais da SBD e da IDF para a população geral. Dada a alta prevalência de DMG e DM2 na população brasileira e as crescentes possibilidades terapêuticas, esse pode ser o momento ideal para repensar nossos protocolos de cuidado com a saúde metabólica da mulher após o parto.
Veja também: Uso de probióticos pode prevenir diabetes gestacional?
Como você avalia este conteúdo?
Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.