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Endocrinologia3 novembro 2025

Tirzepatida é segura no tratamento do diabetes em crianças e adolescentes?

Estudo aponta evidências acerca dos agonistas de GLP-1, como a liraglutida e semaglutida, que devem ser considerados por endocrinologistas e pediatras.

O diabetes tipo 2 em crianças e adolescentes, antes considerado uma raridade, tornou-se uma das manifestações mais alarmantes da epidemia global de obesidade. Nos últimos 20 anos, sua incidência aumentou exponencialmente, acompanhando o crescimento da obesidade infantil e o sedentarismo. A doença em jovens é notoriamente mais agressiva que em adultos, onde a resistência insulínica é mais acentuada, a falência das células β ocorre mais cedo e o risco de complicações cardiovasculares e renais aparece também de forma mais precoce. 

Os estudos de coorte, como o TODAY e o RISE, já haviam revelado que adolescentes com diabetes tipo 2 frequentemente apresentam progressão rápida da doença e falha terapêutica precoce, mesmo com múltiplos agentes. Atrelado a isso, as opções terapêuticas hoje ainda são escassas e pouco eficazes. Até há pouco tempo, apenas metformina e insulina estavam aprovadas para essa faixa etária. A história começou a mudar com a aprovação da empagliflozina e evidências acerca dos agonistas de GLP-1, como a liraglutida e semaglutida. 

Nesse cenário, a tirzepatida, um agonista dual dos receptores de GIP (glucose-dependent insulinotropic polypeptide) e GLP-1, desponta como uma inovação promissora. Nos estudos em adultos, a molécula demonstrou reduções sem precedentes da hemoglobina glicada (−2,4% a −2,6%) e perdas ponderais superiores a 10–15% nessa população, que normalmente perde menos peso, com benefícios amplos em parâmetros metabólicos. O estudo SURPASS-PEDS, publicado no The Lancet em setembro de 2025, é o primeiro ensaio clínico randomizado de fase 3 a avaliar a tirzepatida em crianças e adolescentes com diabetes tipo 2, oferecendo uma visão inédita sobre seu potencial de modificar o curso da doença desde o início da vida. Trazemos os highlights do estudo aqui no portal. 

O estudo

O SURPASS-PEDS foi um ensaio multicêntrico, randomizado, duplo-cego, controlado por placebo, conduzido em 39 centros de oito países, incluindo o Brasil, totalizando 99 participantes com idades entre 10 e 18 anos, após critérios de inclusão e exclusão aplicados. 

Todos os participantes tinham IMC acima do percentil 85 para idade e sexo, peso mínimo de 50 kg e HbA1c entre 6,5% e 11%, sob tratamento prévio com metformina e/ou insulina basal. Os adolescentes foram randomizados em proporção 1:1:1 para receber tirzepatida 5 mg, tirzepatida 10 mg ou placebo, administrados uma vez por semana por via subcutânea, durante 30 semanas de fase duplo-cega, seguidas por 22 semanas de extensão aberta (totalizando 52 semanas de acompanhamento). O escalonamento da dose iniciou com 2,5 mg, aumentando a cada quatro semanas até atingir a dose-alvo. 

O desfecho primário foi a mudança média da HbA1c da linha de base até a semana 30. Os desfechos secundários incluíram a proporção de pacientes com HbA1c <7% ou ≤6,5%, variações no peso, IMC, glicemia de jejum e parâmetros lipídicos, além de medidas de qualidade de vida (PedsQL e EQ-5D-Y). 

A amostra foi composta majoritariamente por meninas (61%), e dois terços dos participantes eram de origem hispânica ou latina — uma característica relevante, considerando a alta prevalência da doença nesse grupo étnico. A duração média do diabetes era de 2,4 anos, e o IMC médio de 35,4 kg/m², refletindo uma população jovem com obesidade e resistência insulínica significativas. Cerca de 8% dos indivíduos usavam apenas insulina, enquanto 68% usava apenas metformina. A HbA1c inicial média era de 8%. 

Resultados

Após 30 semanas, a tirzepatida promoveu reduções significativas e clinicamente expressivas da hemoglobina glicada, em contraste com a estabilidade observada no grupo placebo. 

  • HbA1c: houve queda média de −2,16% com 5 mg, −2,3% com 10 mg e -2,23% de toda a coorte “tirzepatida”, contra +0,05% com placebo, resultando em uma diferença estimada de −2,28% das as doses em conjunto para o placebo (IC95% −2,87 a −1,69; p<0,0001). 
  • 84,2% dos pacientes no grupo de 5 mg e 91,5% no grupo de 10 mg atingiram HbA1c <7%, enquanto apenas 34% no placebo alcançaram esse nível. 
  • Uma HbA1c < 6,5% foi obtida por 70,8% e 86,1% dos adolescentes tratados, comparados a 27,8% no grupo controle, e 53,4% dos participantes com tirzepatida 10 mg atingiram HbA1c <5,7%, considerada normoglicemia.
     

Além do controle glicêmico, a tirzepatida demonstrou um impacto expressivo no peso corporal e na composição corporal. O peso médio reduziu-se em −6,8% com 5 mg e −10,5% com 10 mg, enquanto os adolescentes em uso de placebo tiveram ligeiro ganho ponderal (+0,4%). O IMC caiu em média −7,4% e −11,2%, respectivamente, valores comparáveis aos observados em adultos tratados nos estudos SURPASS. 

A melhora metabólica foi acompanhada de reduções significativas na glicemia de jejum (− 44,2 mg/dL) e em marcadores de risco cardiovascular, incluindo queda da pressão arterial sistólica em até 7 mmHg, redução do colesterol LDL e triglicerídeos, e melhora da proteína C reativa, marcador de inflamação. 

Esses efeitos se mantiveram sustentados até a semana 52, demonstrando durabilidade terapêutica mesmo após um ano de uso contínuo. Na fase de extensão, a HbA1c média permaneceu 2,1% a 2,3% abaixo do basal, e as reduções ponderais chegaram a −8,9% (5 mg) e −15,1% (10 mg), com consistência entre sexos e etnias. 

Outro achado de relevância clínica foi a melhora expressiva na qualidade de vida relatada pelos adolescentes, sobretudo na percepção de bem-estar físico, autoconfiança e controle da doença, conforme os questionários PedsQL e EQ-5D-Y. 

Perfil de segurança

O perfil de segurança foi consistente com o observado em adultos, sem novos sinais de preocupação. Eventos adversos ocorreram em 66% dos pacientes com tirzepatida 5 mg, 70% com 10 mg e 44% com placebo. A maioria foi de caráter leve a moderado e predominantemente gastrointestinal, com náuseas em 20%, diarreia em 25% e vômitos em 14% dos casos. Esses sintomas foram transitórios, autolimitados e concentrados nas primeiras semanas de escalonamento. 

Eventos adversos graves foram raros, e apenas dois participantes descontinuaram o tratamento: um por náuseas persistentes e outro por episódio de ideação suicida leve, sem relação causal estabelecida com o fármaco. Não houve casos de pancreatite, carcinoma medular de tireoide, mortes ou eventos cardiovasculares maiores. 

A incidência de hipoglicemia (<54 mg/dL) foi discretamente maior nos grupos de tirzepatida (15% vs 6% no placebo), principalmente entre os adolescentes em uso concomitante de insulina basal, mas nenhum episódio foi grave. Não se observaram efeitos negativos sobre o crescimento linear, puberdade ou desenvolvimento sexual, confirmando a segurança do uso prolongado na adolescência. 

Conclusão e mensagem prática

O SURPASS-PEDS mostra que a tirzepatida tem o potencial de revolucionar o tratamento do diabetes tipo 2 de início juvenil, a exemplo dos adultos. A medicação foi capaz de demonstrar nessa população um controle glicêmico robusto, perda ponderal significativa e melhora global do risco cardiometabólico em adolescentes. 

Esses resultados superam amplamente o observado com agentes anteriores (como a liraglutida e dulaglutida, por exemplo) e aproximam o tratamento juvenil do padrão alcançado em adultos com terapias incretínicas modernas. A magnitude da redução de HbA1c (superior a −2,2%) e o efeito sobre o peso corporal (com perda média de até 15% numa população com DM) representam avanços clínicos de impacto, especialmente nesse grupo etário em que a doença é progressiva, resistente e de difícil manejo, com poucas opções disponíveis. 

Para a prática clínica, sobretudo no contexto brasileiro, onde a obesidade e o diabetes juvenil crescem rapidamente, a tirzepatida surge como opção promissora de segunda linha precoce após metformina, e possivelmente como terapia combinada inicial em casos de maior gravidade metabólica. Além disso, ao proporcionar reversão do descontrole glicêmico e melhora de fatores de risco ainda na adolescência, pode modificar o curso natural da doença, prevenindo complicações futuras e reduzindo o risco cardiovascular ao longo da vida adulta. Como sempre, a questão atual é o seu alto custo, o que limita seu uso em larga escala. 

No entanto, em termos de avanços científicos, o SURPASS-PEDS é um divisor de águas na endocrinologia pediátrica, demonstrando que o controle metabólico intensivo e seguro é possível também em jovens. 

Autoria

Foto de Luiz Fernando Fonseca Vieira

Luiz Fernando Fonseca Vieira

Endocrinologista pelo HCFMUSP ⦁ Telemedicina no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) ⦁ Residência médica em Clínica médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) ⦁ Graduação em Medicina pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) - Faculdade de Medicina de Botucatu

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