O diabetes mellitus gestacional (DMG) afeta cerca de 8 a 10% das gestações e é reconhecidamente associado a desfechos adversos tanto no curto quanto no longo prazo, tanto para a mãe quanto para o filho. A hiperglicemia intrauterina contribui diretamente para o aumento de peso fetal, adiposidade neonatal, risco de parto cesáreo e, mais tarde, para obesidade, intolerância à glicose e síndrome metabólica na prole. Embora o diagnóstico de DMG seja tradicionalmente baseado em valores de glicose em jejum e após a realização do teste oral de tolerância à glicose, há crescente reconhecimento de que o DMG representa um espectro fisiopatológico heterogêneo, com subtipos que refletem predominantemente deficiência na secreção de insulina, resistência insulínica, ou ambos os defeitos combinados.
Estudos prévios já demonstraram que subtipos fisiopatológicos de DMG estão associados a diferentes padrões metabólicos maternos e desfechos gestacionais, mas até então não se sabia se essas diferenças influenciariam também o metabolismo dos filhos a curto e longo prazo.
Com base nessa lacuna, foi realizado um estudo que buscou avaliar a associação entre diferentes subtipos fisiopatológicos de DMG e os desfechos metabólicos neonatais e durante a infância (aos 11–14 anos), utilizando dados da coorte multinacional HAPO (Hyperglycemia and Adverse Pregnancy Outcome) e seu seguimento (HAPO-FUS), buscando evoluir no entendimento das consequências do DMG. O estudo foi publicado em março/2025 na Diabetes Care, periódico da American Diabetes Association (ADA).
O ESTUDO
O estudo utilizou dados de 7.970 pares mãe-filho da coorte HAPO para avaliação de desfechos neonatais, das quais 1241 (15,6%) tinham DMG, e 4.160 pares da coorte HAPO-FUS para desfechos na infância. O HAPO foi um estudo prospectivo observacional conduzido de 2000 a 2006, que examinou associações entre hiperglicemia materna e desfechos perinatais em centros internacionais. O HAPO-FUS foi o seguimento entre 2013 e 2016, quando as crianças tinham entre 11 e 14 anos, e incluiu medidas antropométricas, bioquímicas e de sensibilidade insulínica.
Em primeiro lugar, as mães foram classificadas retrospectivamente como tendo DMG com base nos critérios da IADPSG/OMS. Posteriormente, foram classificadas em subtipos fisiopatológicos conforme os percentis de sensibilidade e secreção de insulina, definidos em percentis, comparando com gestantes que tiveram um teste de tolerância à glicose normal.
- DMG resistente à insulina: sensibilidade à insulina < percentil 25 (P25) e secreção preservada
- DMG deficiente em insulina: secreção de insulina < percentil 25 (P25), sensibilidade preservada.
- DMG com defeito misto: ambos os parâmetros < percentil 25 (P25)
- DMG não classificado: sem enquadramento nos critérios acima.
Também foram criados subgrupos secundários baseados no perfil glicêmico da curva de tolerância oral à glicose (TOTG): alteração apenas no jejum, apenas no pós sobrecarga, ou em ambos.
As análises estatísticas utilizaram modelos de regressão (linear e logística), com ajustes para variáveis maternas (IMC, idade, paridade, tabagismo, etilismo, pressão arterial, centro do estudo) e características da criança (sexo, idade, história familiar de diabetes). Os desfechos incluíram medidas neonatais (peso ao nascer, dobras cutâneas, peptídeo C de cordão e hipoglicemia) e desfechos metabólicos na infância (IMC, adiposidade, glicemias, sensibilidade insulínica e tolerância à glicose).
Entre as mães com DMG na coorte neonatal (n=1.241), 59,8% apresentavam resistência insulínica, 23,3% eram deficientes em secreção e 10,6% tinham defeito misto. Na coorte de seguimento infantil (n=589), as proporções foram similares. Mães com DMG resistente à insulina tinham IMC médio de 31,7 kg/m², significativamente mais alto que os outros subtipos, e também apresentavam maiores níveis de glicemia de jejum. O grupo com defeito misto apresentou os maiores níveis de glicemia pós-sobrecarga no TOTG.
TODOS OS SUBTIPOS DE DIABETES MELLITUS GESTACIONAL FORAM ASSOCIADOS A UM MAIOR PESO AO NASCER, PORÉM EM GESTANTES COM DEFEITO MISTO (DE SECREÇÃO E RESISTÊNCIA À INSULINA), OS RESULTADOS FORAM PIORES
Todos os subtipos de DMG foram associados a um maior peso ao nascer e maior adiposidade neonatal (medida por somatório de dobras cutâneas), porém odds ratio para fetos grandes para idade gestacional (GIG) foram maiores em gestantes com DMG por defeito misto de secreção e resistência à insulina. Os odds ratios (OR) ajustados para peso > percentil 90 (P90) de:
- Insulina resistente: OR 1,64 (IC95%: 1,30–2,06)
- Deficiente em insulina: OR 1,55 (1,06–2,25)
- Defeito misto: OR 2,69 (1,71–4,24)
Para níveis de peptídeo C > percentil 90 (indicador de hiperinsulinismo fetal), apenas os subtipos resistente e misto mostraram associação significativa:
- Resistente: OR 2,31 (1,83–2,93)
- Misto: OR 1,87 (1,10–3,18)
- Deficiente: OR 0,97 (NS)
A hipoglicemia neonatal foi mais comum em recém-nascidos de mães com DMG resistente (OR 2,03; IC95%: 1,16–3,55), sem significância nos demais subtipos.
DESFECHOS METABÓLICOS NA PROLE ENTRE 11 E 14 ANOS
Os filhos de mães com DMG resistente à insulina apresentaram:
- Maior risco de obesidade: OR 1,53 (1,13–2,08)
- Maior risco de percentual de gordura > percentil 85: OR 1,35 (1,01–1,80)
- Redução significativa na sensibilidade insulínica estimada (Matsuda): −1,98 (p=0,01)
Quanto aos desfechos glicêmicos na infância, apenas o subtipo defeito misto mostrou risco aumentado de glicemia de jejum alterada (OR 2,52 (1,05-4,0), enquanto todos os subtipos (deficiente em insulina, resistente ou misto) apresentaram maiores chances de alterações no TOTG de 1h e 2h (realizados na criança).
Vale destacar que todos os modelos foram ajustados para IMC materno, sugerindo que os efeitos são independentes da obesidade materna.
DIABETES GESTACIONAL DIFERENTE, DESFECHOS DIFERENTES
Este estudo fornece evidências de que diferentes subtipos fisiopatológicos de DMG se associam de maneira também distinta aos desfechos metabólicos dos filhos, tanto no período neonatal quanto na adolescência. Enquanto todos os subtipos aumentam o risco de peso elevado ao nascer e adiposidade neonatal, apenas os subtipos com resistência insulínica materna (isolada ou combinada) se associam a hiperinsulinismo fetal (refletido pelo peptídeo C) e hipoglicemia neonatal, ao passo que apenas o subtipo resistente se associou a um maior risco de obesidade no futuro.
Os autores do estudo discutem a possibilidade de que mecanismos biológicos subjacentes — como diferenças no metaboloma materno e exposição fetal a lipídios, aminoácidos de cadeia ramificada e glicemia em jejum elevada — possam estar por trás dessas associações, o que reforçaria o papel da programação metabólica intrauterina na gênese de doenças crônicas.
PERSPECTIVAS
Este estudo demonstrou uma vez mais que o DMG não é uma entidade uniforme, e que a estratificação por subtipos fisiopatológicos pode permitir a identificação de filhos com risco aumentado de obesidade, hiperglicemia e resistência insulínica já na infância. Na prática clínica, esse conhecimento abre espaço para uma abordagem personalizada do cuidado perinatal: mães com DMG resistente à insulina ou com defeito misto poderiam ser monitoradas mais de perto durante a gravidez, e seus filhos acompanhados precocemente para intervenções nutricionais e comportamentais preventivas.
No Brasil, onde a prevalência de obesidade infantil vem crescendo rapidamente, e o DMG afeta cerca de 16% a 18% das gestações, reconhecer os diferentes perfis fisiopatológicos do DMG pode ser uma ferramenta estratégica para prevenção de doenças metabólicas desde a vida intrauterina. Mais do que tratar a hiperglicemia gestacional com um corte glicêmico, será necessário compreender suas raízes fisiológicas — e suas implicações materno-fetais ao longo da vida.
Veja também: Diabetes gestacional: o diagnóstico deve ser revisto?
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