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Endocrinologia7 novembro 2025

Potencial dos inibidores de SGLT-2 para o tratamento de MODY HNF-1 alfa

Estudo indica expressão reduzida de SGLT2 em HNF1A-MODY parece ter um impacto clínico modesto sobre a reabsorção renal de glicose.

O diabetes monogênico, sobretudo o maturity-onset diabetes of the young (MODY) representa uma categoria distinta dentro do espectro do diabetes, caracterizada por mutações que comprometem a função das células β pancreáticas. Entre os subtipos, o MODY3 (HNF1 alfa) é o mais prevalente nos EUA, segundo mais prevalente no Brasil (ficando atrás apenas do GCK) e resulta de variantes patogênicas no gene HNF1A, responsável pela expressão do fator de transcrição hepatocyte nuclear factor-1α (HNF-1α). Essa proteína exerce um papel crucial na regulação da expressão de genes envolvidos no metabolismo da glicose, incluindo o SLC5A2, que codifica o transportador renal de glicose dependente de sódio tipo 2 (SGLT2). 

A disfunção do HNF1A leva a defeitos na secreção de insulina e também à redução da expressão de SGLT2 nos túbulos renais proximais, promovendo uma glicosúria desproporcionalmente elevada para o grau de hiperglicemia. Essa característica é tão marcante que, historicamente, a presença de glicose urinária em pacientes não diabéticos foi um dos primeiros sinais clínicos identificados nessa condição. Modelos murinos com knockout do gene HNF1A demonstraram essa diminuição de expressão de SGLT2, levantando a hipótese de que a inibição farmacológica desse transportador através do uso de inibidores de SGLT-2 poderia ser menos eficaz em indivíduos com MODY3. 

Contudo, na prática clínica, há relatos de resposta glicêmica favorável ao uso de inibidores de SGLT2 (iSGLT2) em pacientes com MODY 3, incluindo reduções da glicemia e da necessidade de sulfonilureias. Recentemente foi elaborado um estudo para averiguar qual seria a resposta do uso de inibidores de SGLT-2 numa coorte de pacientes com MODY 3 em comparação a pacientes com DM2, sob condições padronizadas de glicemia induzida por um clamp hiperglicêmico. Pelo interesse terapêutico e até mesmo fisiopatológico do MODY 3, trazemos o estudo para discussão no portal. 

Métodos do estudo

O estudo foi um ensaio clínico randomizado, duplo-cego e cruzado (cross over), conduzido no Steno Diabetes Center Copenhagen, na Dinamarca. Participaram 11 indivíduos com HNF1A-MODY (confirmados geneticamente) e 10 pacientes com DM2, todos com função renal preservada (taxa de filtração glomerular média de 113 mL/min e 103 mL/min, respectivamente). 

O desenho experimental consistiu em dois dias de estudo, separados por pelo menos uma semana, nos quais cada participante foi submetido a um clamp hiperglicêmico de três etapas (glicemias alvo de 10, 14 e 18 mmol/L) após receber empagliflozina 25 mg ou placebo duas horas antes do início do procedimento. O objetivo era avaliar a excreção urinária de glicose (glicosúria) sob condições glicêmicas controladas, eliminando a influência de variações endógenas de glicemia ou da função renal. 

Os participantes com HNF1A-MODY tinham idade média de 49 anos (±15), diagnóstico aos 17 anos de idade e duração média de diabetes de 32 anos, enquanto o grupo de pacientes com DM2 tinha idade média de 63 anos, diagnóstico aos 52 e duração média de 11 anos. A maioria dos indivíduos com MODY3 era tratada com sulfonilureias, enquanto todos os participantes com DM2 usavam metformina. Nenhum fazia uso prévio de iSGLT2. 

A coleta de urina foi realizada em períodos definidos durante o clamp e analisada para glicose, sódio, potássio e creatinina, ajustando-se os resultados pela taxa de filtração glomerular (GFR). O principal desfecho avaliado foi a diferença entre os grupos na excreção urinária de glicose após o uso dos iSGLT2. 

O QUE É UM CLAMP HIPERGLICÊMICO E EUGLICÊMICO 

Os clamps metabólicos são considerados o padrão-ouro para avaliar a sensibilidade à insulina e a função das células β em pesquisas fisiológicas e clínicas. Trata-se de técnicas experimentais nas quais a glicemia é mantida de forma artificialmente constante, por meio da infusão endovenosa controlada de glicose e/ou insulina, enquanto se monitoram respostas hormonais e metabólicas. 

No clamp euglicêmico hiperinsulinêmico, utilizado para avaliar a sensibilidade periférica à insulina, infunde-se insulina em taxa fixa, elevando sua concentração plasmática de modo sustentado, e ajusta-se a infusão de glicose para manter a glicemia em níveis normais (geralmente entre 90 e 100 mg/dL). A taxa de glicose necessária para manter a euglicemia reflete a capacidade dos tecidos, especialmente o músculo esquelético, de captar glicose sob estímulo insulínico. 

Já o clamp hiperglicêmico, empregado neste estudo, é desenhado para avaliar a resposta secretória pancreática à hiperglicemia e o comportamento da excreção renal de glicose sob diferentes níveis de glicose plasmática. Nessa técnica, eleva-se e mantém a glicemia em patamares fixos e crescentes (no caso deste estudo, 10, 14 e 18 mmol/L), simulando estados de hiperglicemia controlada. Assim, é possível quantificar com precisão quanto de glicose é filtrada pelos glomérulos, reabsorvido pelos transportadores SGLT2/SGLT1 e, por consequência, excretado na urina. Essa abordagem experimental elimina a variabilidade natural da glicemia e permite comparar grupos distintos sob as mesmas condições fisiológicas. 

Resultados

A empagliflozina aumentou de forma significativa a excreção urinária de glicose em ambos os grupos, mostrando, para surpresa dos autores (e de todos) que o bloqueio efetivo dos transportadores renais SGLT2 foi tão efetivo em pacientes com MODY 3 como em pacientes com  DM2, não havendo diferenças estatisticamente significativas entre os grupos. A quantidade média de glicose excretada durante o clamp de 3 horas foi de 24,5 g (IC95%: 20,6–28,3) nos indivíduos com HNF1A-MODY e 23,5 g (IC95%: 20,4–26,5) nos pacientes com DM2 (diferença: 1,0 g; p=0,6). 

Esses dados indicam que, apesar da expressão potencialmente reduzida de SGLT2 nos portadores de MODY HNF1A, a magnitude do efeito farmacológico do inibidor foi muito parecida à observada em pessoas com DM2. A glicemia plasmática média durante o clamp foi semelhante entre os grupos e manteve-se estável, com leve queda de ~2% sob o efeito da empagliflozina em ambos os grupos. Não houve alterações significativas no peptídeo C ou glucagon, sugerindo que a inibição do SGLT2 não interferiu na secreção pancreática. 

A natriurese aumentou significativamente durante o uso de empagliflozina, acompanhada de discreta redução do potássio sérico, o que está em linha com os efeitos fisiológicos esperados do fármaco. O volume urinário dobrou em ambos os grupos, sem diferença significativa entre MODY3 e DM2. 

Pontos de atenção

Os achados deste estudo trazem implicações fisiopatológicas e clínicas. A expressão reduzida de SGLT2 em HNF1A-MODY parece ter um impacto clínico modesto sobre a reabsorção renal de glicose e não compromete a ação farmacológica dos iSGLT2. 

Em modelos experimentais anteriores, acreditava-se que o menor nível de SGLT2 nos túbulos renais dos portadores de MODY3 resultaria em um efeito “natural” semelhante ao dos inibidores farmacológicos, tornando-os potencialmente menos responsivos. Entretanto, os resultados do estudo em pauta demonstram que o bloqueio farmacológico adicional do SGLT2 gera sim um aumento na glicosúria comparável ao observado em indivíduos com DM2, indicando que ainda há expressão funcional suficiente do transportador para ser alvo terapêutico. 

Essa observação modifica uma concepção fisiológica tradicional sobre o MODY3; Embora o gene HNF1A participe da regulação do SGLT2, a deficiência parcial desse fator de transcrição não é suficiente para abolir o efeito do fármaco, o que abre novas perspectivas terapêuticas. 

Outro aspecto relevante é que a glicosúria espontânea observada em HNF1A-MODY ocorre apenas em níveis glicêmicos relativamente altos, e não em condições basais ou de glicemia levemente elevada, sugerindo que a perda de glicose urinária nesses pacientes é quantitativamente pequena no dia a dia. Assim, o uso de iSGLT2 poderia contribuir para redução glicêmica adicional e sustentada sem risco de hipoglicemia, sobretudo em indivíduos que apresentam ganho ponderal ou hipoglicemias associadas ao uso de sulfonilureias. 

Apesar do tamanho amostral limitado (n=21), o desenho cruzado e o controle rigoroso das variáveis metabólicas trazem um peso maior às conclusões. Contudo, claro, estudos maiores, em contexto de uso contínuo e com objetivos clnicos são necessários para avaliar o impacto glicêmico e a segurança a longo prazo, incluindo o risco de cetoacidose e os efeitos sobre peso e função renal. 

Conclusão e mensagem prática

Este estudo dinamarquês, publicado recentemente na Diabetes Care, aprofunda nosso entendimento sobre o papel dos inibidores de SGLT2 no contexto do diabetes monogênico, demonstrando que esses fármacos mantém eficácia em seu efeito glicosúrico, mesmo diante de uma expressão potencialmente reduzida do transportador renal. 

Na prática clínica, isso significa que os iSGLT2 — tradicionalmente indicados para DM2 — podem representar uma opção terapêutica eficaz também para pacientes com MODY3, especialmente aqueles com hipoglicemias induzidas por sulfonilureias ou ganho de peso indesejado. 

A introdução criteriosa dos iSGLT2 nesse grupo pode representar uma estratégia eficaz de controle glicêmico com baixo risco de hipoglicemia e potencial benefício cardiovascular e renal, ampliando as possibilidades de manejo metabólico de precisão. Agora, esperemos novos estudos com avaliação longitudinal em seu impacto clínico e segurança nesses pacientes. 

 

Autoria

Foto de Luiz Fernando Fonseca Vieira

Luiz Fernando Fonseca Vieira

Endocrinologista pelo HCFMUSP ⦁ Telemedicina no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) ⦁ Residência médica em Clínica médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) ⦁ Graduação em Medicina pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) - Faculdade de Medicina de Botucatu

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