As formas monogênicas de diabetes representam uma fração pequena, porém de enorme importância clínica e científica, dentro do espectro das doenças metabólicas. Elas resultam de mutações únicas em genes que regulam o desenvolvimento, a função e a sobrevivência das células β pancreáticas, gerando um fenótipo de hiperglicemia que, ao contrário do diabetes tipo 1 (DM1) e tipo 2 (DM2), não tem base autoimune ou poligênica. Nos últimos 15 anos, o avanço das tecnologias de sequenciamento genético e o amadurecimento do conceito de medicina de precisão vem auxiliando a melhor compreensão dessas condições, permitindo o diagnóstico genético de patologias antes consideradas idiopáticas e revelando subtipos de diabetes com terapias específicas e prognósticos distintos.
Recentemente foi publicada na Diabetologia uma revisão sobre o tema, discutindo os avanços e as disparidades que marcam o cenário atual. Apesar do acesso ao diagnóstico genético e a representação de populações não europeias ainda extremamente limitadas, a compreensão sobre o diabetes monogênico auxilia no aprofundamento do conhecimento sobre mecanismos fundamentais da secreção de insulina e, por extensão, abre portas para a prevenção e o tratamento também das formas mais comuns da doença. Pela importância do tema, trazemos o artigo para discussão no portal.
Métodos do estudo
A revisão narrativa, feita por especialistas do Reino Unido, Egito, Sudão, Vietnã e inclusive Brasil, analisa em profundidade a biologia, a epidemiologia e os desafios diagnósticos do diabetes monogênico, com foco especial nas formas neonatal (DMN) e de início jovem (MODY).
O DMN, definido por diagnóstico de diabetes antes dos 6 meses de idade, constitui uma das condições mais emblemáticas da medicina de precisão em endocrinologia. Até o momento, foram descritas 43 causas genéticas, abrangendo heranças autossômicas dominantes, recessivas e ligadas ao X. A identificação do defeito genético é crucial, pois permite terapias específicas, como a substituição de insulina por sulfonilureias em mutações ativadoras de KCNJ11 ou ABCC8, que codificam os canais de potássio/ATPase. O tratamento pode normalizar a glicemia e melhorar o neurodesenvolvimento, reduzindo o risco de sequelas cognitivas quando iniciado precocemente. Essa transformação terapêutica ilustra, talvez melhor que qualquer outro exemplo, o poder do diagnóstico genético em mudar o curso natural de uma doença.
As formas transitórias, em contraste, entram em remissão após os primeiros meses de vida, mas frequentemente recidivam na infância ou adolescência, enquanto as sindrômicas incluem defeitos mais amplos, como a agenesia pancreática (mutação em GATA6) e a síndrome IPEX (FOXP3), em que o diabetes é apenas uma das manifestações de um distúrbio multissistêmico.

O MODY
O MODY, por sua vez, é uma forma de diabetes autossômica dominante, frequentemente confundida com DM1 ou DM2. Tradicionalmente diagnosticado antes dos 25 anos, hoje se reconhece que pode ocorrer tardiamente e até de forma de novo, sem história familiar aparente. Mais de 11 genes estão estabelecidos como causas de MODY, sendo HNF1A, HNF4A e GCK os mais comuns. O diagnóstico molecular pode modificar significativamente o manejo terapêutico. Pacientes com mutações em HNF1A e HNF4A respondem de forma brilhante a sulfonilureias em baixas doses, enquanto o MODY GCK cursa com hiperglicemia leve e estável, sem necessidade de tratamento.
Resultados
O estudo destaca que, mesmo em sistemas de saúde organizados, como o britânico, até 77% dos casos de MODY permanecem não identificados. Esse número reflete tanto a falta de acesso ao diagnóstico molecular como a ausência de familiaridade dos clínicos com os sinais que devem motivar o rastreio genético, como por exemplo a ausência de autoanticorpos, níveis preservados de peptídeo C mesmo após anos de diagnóstico, e história familiar vertical de diabetes não insulinodependente.
Em termos epidemiológicos, o artigo descreve um cenário heterogêneo. O DMN ocorre em 1 a cada 100 mil nascimentos em média, mas chega a 1 em 20 mil em regiões como Sudão ou Qatar, onde há alta taxa de consanguinidade e, portanto, maior frequência de mutações recessivas, como EIF2AK3. Já o MODY, estimado em 1 a cada 10 mil adultos, mostra prevalência muito variável conforme o grau de conscientização médica e acesso ao sequenciamento. Na América Latina e na África, a prevalência real é provavelmente subestimada, e as características fenotípicas específicas dessas populações seguem pouco estudadas. Dados brasileiros apontam para o MODY GCK como o mais prevalente em nosso país.
- Estratégias de teste molecular
O trabalho também discute a evolução das estratégias de teste genético. O método de Sanger, utilizado por décadas, foi gradualmente substituído pelo targeted next-generation sequencing (TNGS), estudos de exoma e genoma completos.
Apesar do ganho de sensibilidade, o desafio central passou a ser a interpretação das variantes. A super-representação de genomas europeus nos bancos de dados como o gnomAD e o ClinVar limita a aplicabilidade dos critérios de classificação (como os da ACMG) a outras populações. Variantes benignas em um grupo podem ser erroneamente rotuladas como patogênicas em outro, levando a erros diagnósticos ou tratamentos desnecessários.
Os autores apontam iniciativas em andamento que buscam corrigir essa distorção, como os biobancos All of Us (EUA), Genes & Health (Reino Unido), OurDNA (Austrália), Qatar Biobank e Taiwan Biobank. Essas iniciativas pretendem diversificar o mapa genético global e ampliar a reprodutibilidade das análises.
2. Evolução das terapias
No campo terapêutico, a revisão destaca novas possibilidades além da insulina e das sulfonilureias. Os agonistas do receptor de GLP-1 (GLP-1 RAs), tradicionalmente empregados no DM2, mostraram resultados promissores em casos de HNF1A, HNF4A, ABCC8 e até HNF1B-MODY, sugerindo efeito glicêmico e possivelmente trófico sobre células β. A semaglutida e a tirzepatida aparecem como opções em estudo para formas de MODY com alguma função residual pancreática. Em paralelo, a biotecnologia avança no desenvolvimento de transplantes de ilhotas derivadas de células-tronco, com o primeiro caso humano relatado em 2024 mostrando produção endógena sustentada de insulina sem eventos adversos graves, um marco que pode modificar completamente o tratamento para formas com destruição total das células β.
Conclusão e mensagem prática
Em primeiro lugar, é importante extrairmos o conceito de que o diagnóstico genético não é por capricho ou curiosidade acadêmica, mas sim um componente essencial da boa prática médica nesses casos. Identificar um MODY ou DMN pode modificar completamente o manejo, reduzindo custos e riscos e permitindo intervenções dirigidas. Para contextos como o brasileiro, onde há expertise crescente, mas a infraestrutura ainda é desigual, é fundamental criar redes de referência, adaptar painéis genéticos à diversidade local e incorporar o raciocínio genético ao cotidiano do endocrinologista. Vale lembrar que a MODY calculator, calculadora a partir da qual estimamos o risco de MODY, já foi avaliada e validada na população nacional. Se houver uma probabilidade de MODY > 60%, devemos proceder com a investigação molecular. A calculadora pode ser encontrada em https://www.diabetesgenes.org/exeter-diabetes-app/ModyCalculator.
A eficácia de novas terapias também se encontra em expansão. O uso de agonistas de GLP-1 e as terapias celulares podem modificar significativamente o curso das condições em que os tratamentos clássicos deixam de surtir efeito, proporcionando a essa população a possibilidade de um controle metabólico mais prolongado e mais adequado.
Autoria

Luiz Fernando Fonseca Vieira
Endocrinologista pelo HCFMUSP ⦁ Telemedicina no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) ⦁ Residência médica em Clínica médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) ⦁ Graduação em Medicina pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) - Faculdade de Medicina de Botucatu
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