O diabetes mellitus gestacional (DMG), além das conhecidas complicações gestacionais, também é um marcador precoce de risco cardiometabólico, tanto para a mãe quanto para o filho. A prevalência global da doença tem aumentado de forma expressiva, acompanhando o crescimento da obesidade e o envelhecimento materno.
Recentemente foi publicada uma revisão na revista Diabetologia que visou analisar o impacto da ancestralidade genética e da etnia na suscetibilidade ao DMG, compreendendo-se que o aumento na prevalência do DMG globalmente também reflete diferenças genéticas, étnicas e socioeconômicas profundas.
Ao integrar dados de grandes coortes multiétnicas, estudos genômicos e observações clínicas, o estudo traz insights sobre o DMG e causas possíveis para sua variável prevalência mundial. Pela relevância do tema, trazemos a revisão para discussão no portal.
Métodos do estudo
O estudo de revisão mostra que a prevalência global de diabetes mellitus gestacional (DMG) apresenta variações marcantes entre regiões do mundo, refletindo não apenas diferenças biológicas e genéticas, mas também desigualdades estruturais, socioeconômicas, ambientais e nos próprios métodos diagnósticos utilizados em cada país. Os dados trazidos pelos autores indicam que a prevalência padronizada de hiperglicemia na gestação (incluindo DMG e diabetes pré gestacional ou overt) varia de 13,8% na África a 31,7% no Sudeste Asiático, com valores intermediários em regiões como Europa (14,2%), América do Norte e Caribe (22,4%), Oriente Médio e Norte da África (19,4%), América do Sul e Central (15,8%) e Pacífico Ocidental (19,8%);
Essa heterogeneidade também acontece dentro de cada região. Tais contrastes refletem diferenças profundas em perfil étnico, urbanização, padrões alimentares, níveis de atividade física e carga de obesidade, além da forma como cada sistema de saúde realiza rastreamento (universal ou seletivo) e quais critérios diagnósticos utiliza (como IADPSG, WHO 2013 ou critérios nacionais anteriores como Carpenter Coustan). É importante notar que, quando métodos padronizados como o IADPSG são aplicados, observa-se um aumento consistente das taxas de DMG, muitas vezes duplicando ou triplicando a prevalência previamente registrada, mostrando que parte da variação global decorre da prática diagnóstica e não apenas da biologia populacional.
Comparando diretamente as regiões, em países ocidentais, mulheres de ascendência sul-asiática, do Oriente Médio, africana e hispânica apresentam risco de duas a quatro vezes maior que o das europeias brancas, mesmo quando controladas por idade, IMC e paridade. Mulheres de origem europeia oriental e nórdica exibem as menores taxas, sugerindo que o fenótipo de resistência insulínica da gestação é mais facilmente compensado em certos contextos genéticos.
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Resultados
O artigo ressalta que os fatores de risco clássicos como obesidade, ganho ponderal excessivo, idade avançada e histórico familiar não explicam completamente essas diferenças. Diversos estudos genômicos recentes, incluindo análises de associação ampla (GWAS), identificaram variantes genéticas associadas ao DMG que se sobrepõem parcialmente àquelas do diabetes tipo 2, reforçando o papel compartilhado de vias metabólicas centrais como a secreção e sensibilidade à insulina. Entretanto, a frequência dessas variantes e o seu efeito sobre o risco variam substancialmente entre populações.
Entre os exemplos mais consistentes, o alelo de risco no gene MTNR1B (melatonin receptor 1B), que influencia a secreção de insulina, apresenta frequência quase duas vezes maior em populações europeias que em africanas, mas paradoxalmente confere maior impacto glicêmico em mulheres de ascendência asiática. De modo semelhante, variantes em TCF7L2, CDKAL1 e GCK mostram padrões de associação diferentes conforme o contexto genético e ambiental, evidenciando a interação gene-ambiente como um determinante crucial do risco.
Mas claro, os fatores de risco clássicos têm sua influência. Os autores da revisão também enfatizam o papel da adiposidade e distribuição da gordura corporal, que diferem de maneira marcante entre etnias. Mulheres de origem asiática, por exemplo, acumulam mais gordura visceral e intramuscular mesmo com IMC considerados “normais” para padrões europeus, o que explica a maior resistência à insulina e o risco elevado de DMG mesmo em ausência de obesidade aparente. A revisão cita dados de imagem e de clamp euglicêmico que demonstram que, para o mesmo grau de gordura corporal total, as mulheres asiáticas exibem menor sensibilidade insulínica e menor secreção compensatória.
Outro ponto destacado é a influência da migração e da aculturação. Estudos com populações asiáticas e africanas que migraram para países ocidentais mostram que o risco de DMG aumenta significativamente na segunda geração, possivelmente em razão da mudança no padrão alimentar, redução da atividade física e maior ganho ponderal gestacional. Essa observação reforça que o fenótipo metabólico do DMG resulta de um desequilíbrio entre predisposição genética ancestral e ambiente ao qual a gestante está exposta.
A revisão também aborda a contribuição dos fatores epigenéticos e transgeracionais, destacando que a exposição intrauterina à hiperglicemia materna pode perpetuar o risco de DMG nas gerações seguintes. Filhas de mães com DMG têm risco 2 a 3 vezes maior de desenvolver a doença na própria gestação, mesmo após ajuste para IMC e fatores de estilo de vida. Esse ciclo transgeracional de risco é particularmente preocupante em populações de alta prevalência, como sul-asiáticas e latino-americanas, e sugere um componente de “memória metabólica” herdada não apenas geneticamente, mas também por mecanismos epigenéticos, como metilação do DNA em genes relacionados à insulina e ao metabolismo lipídico.
Do ponto de vista fisiopatológico, os autores reforçam que o DMG decorre da incapacidade das células β de compensar a resistência fisiológica à insulina induzida pela gestação. Esse equilíbrio dinâmico é fortemente modulado por fatores genéticos: estudos com famílias e gêmeos mostram herdabilidade do DMG superior a 50%, com genes ligados tanto à função pancreática (GCK, HNF1A, KCNJ11) quanto à ação periférica da insulina (IRS1, PPARG). A interação dessas variantes com o ambiente metabólico, dietas hipercalóricas, obesidade central e inatividade física, define o limiar de manifestação da doença.
Limitações de critérios e pontos de atenção
No panorama global, também é ressaltado as limitações das diretrizes diagnósticas universais. A aplicação de critérios da IADPSG, baseados em coortes predominantemente europeias, pode levar à super ou subdiagnóstico em outros grupos. Em países asiáticos, por exemplo, o uso de limiares de glicemia padronizados resulta em prevalências acima de 20%, o que nem sempre reflete risco real de complicações. Os autores defendem uma abordagem mais contextualizada, em que os pontos de corte diagnósticos e as estratégias de rastreamento considerem a diversidade genética e fenotípica das populações.
Por fim, a revisão propõe um olhar integrado sobre o impacto das desigualdades sociais e do acesso ao cuidado pré-natal. Mulheres de minorias étnicas, mesmo em países de alta renda, têm menor acesso a diagnóstico precoce e acompanhamento adequado, o que amplifica o risco de complicações obstétricas e metabólicas.
Conclusão e mensagem prática
A revisão reforça que o DMG é uma condição na qual a etnia e a ancestralidade genética desempenham papel importante, porém dependente da interação com o ambiente na qual a gestante está inserida. Para a prática clínica, a principal implicação pode ser a necessidade de se adotar abordagens específicas para cada região.
Em países de grande diversidade étnica, como o Brasil, a heterogeneidade genética da população impõe desafios adicionais. O uso de critérios diagnósticos baseados em populações europeias pode subestimar o risco entre mulheres de ascendência africana e indígena, e superestimar em outras. Investigar a adaptação de protocolos de triagem, incluindo rastreamento precoce em grupos de alto risco e aconselhamento nutricional individualizado pode ser uma estratégia capaz de otimizar a acurácia do diagnóstico e auxiliar no enfoque à populações de maior risco.
A revisão também reforça a importância da investigação de marcadores genéticos e epigenéticos para a condição. Identificar variantes de risco pode, no futuro, permitir modelos preditivos capazes de prever o risco de desenvolvimento de DMG antes mesmo da gestação. O conhecimento dessas predisposições genéticas também pode ser útil para orientar intervenções pré-concepcionais, especialmente em mulheres com história familiar forte de diabetes.
Enquanto o genoma humano é diverso e os fatores de ancestralidade, bem como fatores de risco clássicos são determinantes do DMG, vale ressaltar que o acesso ao cuidado ainda é profundamente desigual. Incorporar a noção de diversidade genética e cultural às políticas públicas de saúde materna é essencial para que o avanço científico se traduza em benefício real.
Autoria

Luiz Fernando Fonseca Vieira
Endocrinologista pelo HCFMUSP ⦁ Telemedicina no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) ⦁ Residência médica em Clínica médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) ⦁ Graduação em Medicina pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) - Faculdade de Medicina de Botucatu
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