Recentemente, diversas sociedades no mundo vêm propondo novas nomenclaturas e definições acerca da esteatose hepática relacionada a disfunções metabólicas, inflamação lobular e desfechos associados, visando melhorar a estratificação de risco dos pacientes e padronização da nomenclatura em artigos. A Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), em sua diretriz, atualizou as nomenclaturas em linha com os principais consensos mundiais.
A redefinição da doença hepática esteatótica (DHE) para esse conceito mais abrangente representa uma evolução significativa na compreensão clínica e etiopatogênica das condições hepáticas associadas ao acúmulo de lipídios. Essa nova nomenclatura busca superar as limitações do termo anterior – doença hepática gordurosa não alcoólica (NAFLD) – e introduz três categorias principais:
- MASLD (metabolic dysfunction-associated steatotic liver disease), diretamente associada a disfunção metabólica, como obesidade, resistência à insulina e dislipidemia. No Brasil, a nomenclatura empregada pela SBD fica como Doença Hepática Esteatótica Metabólica (DHEM).
- ALD (alcohol-related liver disease), relacionada ao consumo crônico de álcool; No Brasil, Doença Hepática Alcoólica (DHA)
- MetALD (DHEM-DHA), uma entidade que engloba a sobreposição entre fatores metabólicos e consumo alcoólico moderado (20-60 g/dia), refletindo a interação sinérgica entre esses fatores no desenvolvimento e progressão da doença.
Além desses termos, o termo steatotic liver disease (doença hepática esteatótica) inclui etiologias raras de esteatose, como causas medicamentosas, distúrbios genéticos e doenças metabólicas hereditárias.
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O impacto na população geral dessa condição é substancial, com estimativas indicando que 30% da população mundial apresenta algum grau de esteatose hepática. A interação entre obesidade, diabetes tipo 2 e consumo alcoólico é um dos principais motores dessa prevalência, que se prevê em ascensão.
Pela relevância do tema, foi publicada recentemente uma revisão no Lancet a respeito do tema, nomenclaturas, estratificação de risco e tratamento. Trazemos os principais pontos para discussão no portal.
Estratificação de risco: pesquisando fibrose hepática
A progressão da esteatose hepática para fibrose hepática é o principal determinante prognóstico, sendo a fibrose avançada (F3/F4) o maior preditor de complicações, incluindo cirrose, carcinoma hepatocelular (CHC) e descompensação hepática. Alguns dos estudos apresentados no artigo de revisão revelam uma clara relação entre os estágios de fibrose e a incidência de eventos hepáticos. Pacientes em F3, por exemplo, apresentaram incidência de 0,99 por 100 pessoas/ano de complicações hepáticas, enquanto em F4 a incidência aumentou para 2,69 por 100 pessoas/ano, evidenciando o impacto exponencial da progressão da fibrose.
A estratificação de risco envolve o uso de ferramentas não invasivas que tem ganhado destaque devido à sua acessibilidade e custo-efetividade. O primeiro passo, para rastreio, deve ser o emprego de escores de risco como o FIB-4 ou o NAFLD Fibrosis Score (NFS). Tais índices permitem a identificação inicial de indivíduos com risco elevado de fibrose significativa (F2-F4). Caso o FIB-4 seja negativo, ou seja, menor que 1,3, o risco é baixo e a recomendação deve ser de acompanhamento e reavaliações pelo menos a cada 3 anos. Caso o valor for > 2,67, é recomendado o encaminhamento direto ao especialista. Em situações intermediárias, devemos proceder a métodos mais específicos para a pesquisa de fibrose, como a elastografia, seja por métodos ultrassonográficos ou por ressonância. A elastografia é uma das ferramentas mais validadas para avaliação da rigidez hepática. Uma alternativa ao método é o score Enhanced Liver Fibrosis (ELF). O mesmo é baseado em análises bioquímicas e fornece uma avaliação indireta, mas robusta, do grau de fibrose.
Caso o resultado da elastrografia transiente for < 8 kPa (ou score ELF < 9,8), também consideramos os pacientes como de baixo risco para fibrose avançada. Caso os valores sejam superiores, devemos proceder ao encaminhamento ao hepatologista também. Por fim, a biópsia hepática, embora invasiva, continua sendo o padrão-ouro em casos de incerteza diagnóstica ou necessidade de avaliação histopatológica detalhada.
Avanços no tratamento da DHEM
Infelizmente, ainda temos poucas terapias diretas para o controle da DHEM. Recentemente foi aprovada pelo FDA a primeira medicação para pacientes com MASH, o resmetirom, um agonista do receptor do hormônio tireoidiano-β (THRB), que mostrou efeitos benéficos na resolução do MASH e regressão da fibrose.
O foco atual do manejo tem sido o desenvolvimento de agentes que atuem em múltiplos mecanismos patogênicos, como o tratamento para obesidade, por exemplo, que pode promover redução de gordura hepática, controle metabólico, ação anti-inflamatória e potencialmente a interrupção da progressão da fibrose.
Agonistas de GLP-1 e derivados
Os agonistas de GLP-1, como a semaglutida, tem demonstrado resultados promissores na redução da gordura hepática e na regressão da inflamação em ensaios clínicos de fase II. Esses medicamentos atuam principalmente na melhora do controle glicêmico e na redução do peso corporal, sendo eficazes na resolução de esteato-hepatite em até 60% dos pacientes com perda de peso ≥ 10%. A semaglutida, em particular, mostrou uma redução significativa na inflamação hepática (P < 0,01) e efeitos antifibróticos preliminares. Apesar de não constar na revisão, a NovoNordisk liberou dados preliminares do estudo Essence, estudo de fase 3 que investigou o impacto da semaglutida em pacientes com fibrose, com desfechos positivos (melhora da fibrose sem piora da esteatohepatite). Aguardemos os resultados definitivos do estudo. Ainda, a retatrutida, agonista triplo GIP/GLP-1 e glucagon parece ter efeitos muito importantes na resolução da esteatose hepática.
Novas terapias no horizonte
Novas terapias estão no horizonte do tratamento da DHEM. Entre os moduladores do FGF21, substâncias como pegozafermin e efruxifermin demonstraram benefícios significativos na melhora da histologia hepática, incluindo resolução da MASH e regressão da fibrose em estudos de fase 2. Outro fármaco promissor é o denifanstat, inibidor da sintase de ácidos graxos (FASN), que atua reduzindo a lipotoxicidade hepática e promovendo melhorias histológicas. Já os agonistas dos receptores PPAR, como o lanifibranor, mostraram resultados positivos na modulação da inflamação hepática e na fibrose, sendo uma estratégia direcionada para corrigir múltiplos aspectos do metabolismo lipídico e inflamatório. No entanto, efeitos adversos, como ganho de peso, são uma preocupação clínica.
Além das abordagens farmacológicas convencionais, novas terapias baseadas em siRNA estão sendo exploradas, incluindo a inibição da expressão de PNPLA3 e da HSD17B13, dois genes fortemente associados ao risco e progressão da MASH. Essas terapias genéticas visam modificar diretamente os fatores predisponentes da doença, representando um avanço significativo no manejo personalizado.
Perspectivas e mensagem prática
A redefinição da doença hepática esteatótica e suas subcategorias DHEM, DHA e DHEM-DHA representa um marco no entendimento das interações metabólicas, genéticas e comportamentais na progressão da doença hepática gordurosa. A estratificação precoce do risco de fibrose, por meio de biomarcadores não invasivos e técnicas avançadas como a elastografia, é crucial para evitar desfechos desfavoráveis.
O desenvolvimento de novas terapias oferece uma perspectiva promissora para o manejo clínico, especialmente em pacientes com alto risco de progressão para cirrose e carcinoma hepatocelular. Ensaios clínicos em andamento devem esclarecer a eficácia dessas abordagens e validar estratégias combinadas, com o objetivo de interromper a progressão da doença hepática esteatótica e melhorar a qualidade de vida dos pacientes.
Mas claro: a abordagem multidisciplinar, que integra o manejo metabólico, abstinência alcoólica e intervenções farmacológicas personalizadas, será determinante para o sucesso no combate à DHE em nível global.
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