A metformina é amplamente reconhecida como uma das terapias de primeira linha para o diabetes tipo 2 devido à sua eficácia na redução da glicemia, benefícios cardiovasculares e baixo risco de hipoglicemia. No entanto, o uso da metformina em pacientes com doença renal crônica (DRC) em estágios finais tem sido historicamente controverso, devido a preocupações com a acidose láctica, um evento adverso raro, mas potencialmente fatal.
Diretrizes nacionais (Sociedade Brasileira de Diabetes, SBD) e internacionais como a da American Diabetes Association (ADA) recomendam a interrupção da metformina quando a taxa de filtração glomerular estimada (eGFR) for menor que 30 mL/min/1,73 m², uma prática hoje praticamente universal. Contudo, as diretrizes se baseiam em precauções teóricas e em estudos observacionais antigos, sem o suporte de ensaios clínicos randomizados robustos.
Nas últimas décadas, novas evidências sobre medicações com possíveis impactos na DRC vêm melhorando os desfechos renais e cardiovasculares nessa população, como o uso de inibidores de SGLT-2, agonistas de GLP-1 e a finerenona. Contudo, o manejo da hiperglicemia continua desafiador em situações de DRC estágio IV ou V, onde restam pouquíssimas opções terapêuticas.
Alguns estudos sugerem que a manutenção da metformina na DRC avançada pode ser segura e até benéfica, especialmente quando usada em doses ajustadas. Estudos retrospectivos indicam que pacientes que continuam utilizando metformina podem apresentar menor mortalidade e risco cardiovascular, indo na contramão das recomendações tradicionais de descontinuação. No entanto, a ausência de um ensaio clínico randomizado (RCT) para avaliar diretamente esta questão impede que essas evidências sejam incorporadas às diretrizes.
Com o objetivo de preencher essa lacuna do conhecimento, foi elaborado um estudo “target trial” com dados observacionais nacionais da Escócia, comparando pacientes com diabetes tipo 2 e DRC estágio IV que continuaram ou interromperam o uso de metformina após a progressão da insuficiência renal. Esse estudo inovador procurou replicar as condições de um ensaio clínico randomizado, minimizando vieses inerentes a estudos observacionais tradicionais, permitindo inferências mais robustas sobre a segurança e eficácia da metformina em uma população de alto risco. O estudo foi recentemente publicado no periódico American Journal of Kidney Diseases e, pela importância do tema, trazemos para cobertura no portal.
Em primeiro lugar: O que é um “target trial” e como foi elaborado?
Como trazido recentemente aqui na cobertura do portal sobre o risco de câncer de tireoide em pacientes em uso de agonistas de GLP-1, um target trial é uma abordagem metodológica que visa reproduzir, com o uso de dados observacionais, as características de um ensaio clínico randomizado ideal. Esse método busca reduzir viéses de tempo, viés de usuário prevalente, de tempo imortal e confusão por indicação, problemas comuns em estudos observacionais convencionais.
Para a execução do target trial no presente estudo, os autores utilizaram a estratégia de clone-censoramento-peso (clone-censor-weight, CCW), composta por três etapas principais:
– Clonagem dos pacientes: Cada indivíduo foi duplicado em duas versões teóricas — uma na qual ele continuaria utilizando metformina e outra na qual a interromperia.
– Censura de indivíduos que desviaram do grupo designado: Se um paciente que deveria permanecer com metformina interrompeu seu uso durante o seguimento, ele foi censurado da análise naquele ponto, e o mesmo ocorreu no grupo de interrupção.
– Ajuste por ponderação de probabilidade inversa (IPCW): A probabilidade de interrupção da metformina foi calculada para cada indivíduo, sendo então aplicada uma ponderação estatística para equilibrar as características entre os grupos.
Esse modelo permitiu simular um ensaio clínico, garantindo que a comparação entre os grupos fosse a melhor possível, reduzindo a influência de fatores clínicos que pudessem enviesar os resultados.
O estudo
O estudo foi conduzido na Escócia, utilizando dados do Scottish Diabetes Research Network–National Diabetes Study (SDRN-NDS), um banco de dados nacional que cobre praticamente todos os pacientes com diabetes do país. A população foi composta por adultos com diabetes tipo 2 (DM2) e função renal previamente normal que, num determinado momento, desenvolveram doença renal crônica estágio IV (TFG < 30 mL/min/1,73 m²).
Foram incluídos indivíduos com idade ≥ 18 anos, DM2 diagnosticado antes de abril de 2019, em uso regular de metformina (definida como uso por >80% dos dias do ano anterior ao diagnóstico de DRC estágio IV), com dois valores consecutivos de TFG < 30 mL/min/1,73 m² com pelo menos 90 dias de intervalo, detectados entre 2010 e 2019. Foram excluídos aqueles com histórico recente de cetoacidose diabética (CAD), uso concomitante de inibidores de SGLT2 ou diagnóstico prévio de doença renal terminal ou necessidade de diálise no momento da inclusão.
O objetivo do estudo foi comparar a mortalidade por todas as causas e como secundários, avaliar o risco de MACE (Major Adverse Cardiovascular Events, como infarto ou AVC não fatal e morte por causas cardiovasculares), após 6 meses de DRC em estádio IV com vs. sem manutenção da metformina; além de incidência de câncer em 3 anos ou morte por doenças respiratórias.
A amostra final do estudo incluiu 4.278 pacientes. Essa coorte foi seguida por um tempo mediano de 2,5 anos. 1.713 (40,1%) interromperam o uso de metformina nos primeiros seis meses após a progressão da DRC. A média de idade da população incluída no estudo foi de 77 anos (±7,2 anos), com 51% mulheres. A mediana da taxa de filtração glomerular estimada (TFG) no momento da inclusão foi de 27 mL/min/1,73 m², sendo que aproximadamente 41,2% dos participantes tinham proteinúria (>300 mg/dia). A presença de comorbidades cardiovasculares era alta, com 38% apresentando doença isquêmica cardíaca e cerca de 10% com doença cerebrovascular. A média de HbA1c foi de 7,3% (DP ±1,1%), com 27,1% dos pacientes apresentando HbA1c ≥ 8,0% no momento da inclusão.
A manutenção da metformina reduziu a mortalidade em pacientes com doença renal crônica
A manutenção da metformina foi associada a menor mortalidade global sem um aumento significativo no risco cardiovascular ou na progressão da insuficiência renal. Após três anos de seguimento, a taxa de sobrevivência foi significativamente maior no grupo que continuou metformina: 70,3% no grupo de manutenção vs. 63,4% no grupo que interrompeu a metformina. Portanto, a mortalidade foi 23% maior entre aqueles que descontinuaram o tratamento (HR: 1,23; IC95%: 1,08-1,41).
Curiosamente, a diferença na mortalidade não foi explicada por eventos cardiovasculares. A incidência de infarto do miocárdio (IAM), AVC e morte cardiovascular foi semelhante entre os grupos, sugerindo que os benefícios da metformina podem estar ligados a outros mecanismos, como redução de inflamação crônica e melhora do metabolismo energético.
Além disso, o risco de morte por doenças respiratórias foi 51% maior entre aqueles que interromperam a metformina (HR: 1,51; IC95%: 1,06-2,12), um achado consistente com estudos anteriores que sugerem um efeito protetor da metformina contra infecções pulmonares e insuficiência respiratória.
Não foram mencionados no corpo do estudo resultados diretos relacionados à incidência e/ou gravidade de episódios de acidose láctica.
Conclusões e perspectivas
Os achados deste estudo desafiam a recomendação tradicional de interromper a metformina em pacientes com DRC avançada, sugerindo que a continuação da terapia pode estar associada a maior sobrevida sem aumentar o risco cardiovascular.
A relevância desses achados para a realidade brasileira é grande. O acesso à metformina é amplo no SUS e sua descontinuação desnecessária pode levar à substituição por hipoglicemiantes com tratamentos mais complexos, como insulinoterapia, além de desencadear primariamente um certo desequilíbrio no controle glicêmico. Lembrando o fato de que em nosso país enfrentamos restrições no acesso a terapias mais caras, como inibidores de SGLT2 e agonistas de GLP-1, a manutenção da metformina pode representar uma estratégia custo-efetiva para melhorar a sobrevida dos pacientes com DRC estágio IV minimizando complicações sem aumentar custos ao sistema de saúde.
Contudo, vale lembrar que, apesar de se tratar de um target trial, tais dados ainda advém de um estudo observacional realizado em base de dados de apenas um país e, portanto, ensaios clínicos randomizados de fato são necessários para confirmar esses achados e definir protocolos mais seguros para o uso prolongado da metformina na DRC avançada. Mas fica a pulga atrás da orelha tanto para considerarmos a individualização do tratamento em casos em que o uso da metformina nessa população possa ser mais seguro e monitorável como para continuar as investigações sobre o tema.
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